"Quarto Escuro", por Orestes Jayme Gama

    Eu pensava que você não seria capaz de mergulhar tão fundo na obscuridade de minhas primeiras recordações, mas aqui você retorna novamente com este presente de medo e angústia e, além disto, traz estas sombras terríveis que nada mais fazem do que povoar com mais monstros estes últimos pesadelos de minha vida.

    Quem são essas sombras, memória? Suas amigas?

    Porque minhas não são.    

 

* * * * * * * * * *

 

    Eu havia irritado meu pai. Eu não deveria ter feito aquilo.

    O livro que meu pai lia era extremamente valioso para ele, mas eu não sabia disto, pois na época eu só tinha seis anos de idade, e nessa idade todos os livros só servem para colorir e rabiscar.

    E foi isso que fiz. Eu colori todas aquelas estrelas que ficavam no interior de círculos, colori cada símbolo estranho que encontrei (hoje sei que são símbolos relacionados à magia), rabisquei todos aqueles textos arcanos e inclusive rasguei muitas páginas.

    Tudo enquanto meu pai cochilava, depois de ter lido aquele livro por muitas e muitas horas.

    Meu pai, depois de acordar e perceber o enorme estrago que eu fizera em seu valiosíssimo livro, urrou como uma fera selvagem e amaldiçoou os céus com palavras tão ásperas que com certeza não passaram desapercebidas. E depois de amaldiçoar os céus, que repentinamente passaram de um límpido azul para um horripilante cinza-tempestade, lançou sobre mim um olhar furioso, como se eu houvesse destruído sua própria vida.

    A punição não tardaria a vir, eu sabia disto. Mas tudo que eu podia fazer era choramingar e esperar até a tempestade passar.

    O início da tempestade fora terrível, meu pai me pegara pelo braço e literalmente me arrastara até a cozinha (ele tinha algo em mente, e a cozinha fazia parte disto).

    Ele me mandou sentar no chão e aguardar sua próxima ordem. Depois, ligou o fogão, colocou a ponta de um facão na chama e ficou esperando... esperando, enquanto rangia os dentes de maneira atormentadora.

    A tempestade só estava no início...

    Minha visão, depois de alguns instantes, já estava completamente embaçada, tantas eram as lágrimas em meus olhos. Mas eu vi bem, vi muito bem, a ponta em brasa daquele facão punidor aproximar-se terrivelmente. Eu senti, violentamente senti, meu pai segurar meu braço como se segurasse o braço de um inimigo mortal, e ouvi, lamentosamente ouvi, sua voz de fúria ordenar-me para que eu abrisse a mão.

Nada mais eu podia fazer a não ser obedecer a meu pai.

    Meu pai aproximava vagarosamente a ponta em brasa daquele facão da palma de minha mão, extremamente trêmula, essa vagarosidade era atormentadora. Pois eu queria ser punido o mais breve possível para que o mais breve possível a tempestade terminasse. Mas meu pai demorava a punir-me, estendendo aquela tempestade de ira que ele sentia por um tempo cruelmente longo. Aquele pesadelo parecia que ia estender-se por muitas e muitas horas.

    Quando finalmente meu pai estava prestes a encostar a ponta em brasa do facão na palma de minha mão, ele mudou a expressão de seu rosto. A raiva que ele sentia transformou-se num sentimento ainda hoje para mim inominável, mas de uma natureza ainda mais monstruosa que a do ódio. A tempestade iria piorar.

    O olhar de meu pai transparecia rancor, como se me odiasse por muitos séculos. Mas ele hesitava... hesitava, e por fim acabou por afastar o facão.

    Havia em sua mente um pensamento poderoso. Um pensamento poderoso o suficiente para fazer com que ele desistisse de queimar a minha mão, e ele obedeceu a esse pensamento.

    - Melhor, farei melhor. Ele disse.

    E novamente me arrastou literalmente, mas desta vez não para um canto comum da casa...

    Eu fora ensinado a temer aquele canto da casa onde meu pai me levara. Era um lugar empoeirado, abandonado, esquecido.     Onde eu e minha pequena irmã jamais havíamos brincado. Onde minha mãe evitava ir a qualquer custo. Onde meu pai ordenara que nunca, nunca me aproximasse.

    Mas agora eu estava ali, no “corredor proibido”, guiado, ou melhor, levado à força, pelas próprias mãos de meu pai.

    O “corredor proibido” era apenas uma espécie de zona de segurança, eu sabia disto. Não havia nenhuma porta para barrar o acesso a esse lugar, nenhum tipo de obstáculo impedia que alguém se dirigisse para lá. O único problema que havia com o “corredor proibido” é que ele era o único acesso existente na casa que conduzia ao verdadeiro motivo de toda a preocupação de minha família: o “quarto escuro”.

    Se eu aprendera a ver o “corredor proibido” como uma espécie de inferno, o “quarto escuro” era um lugar ainda mais pavoroso.

    Desesperei-me, tentei fugir, chamei minha mãe, clamei por piedade, mas nada disto adiantou. A convicção de meu pai em punir-me era maior que o amor que ele sentia por mim.

    Um calafrio medonho tomou conta de todo meu corpo enquanto meu pai abria a porta daquele lugar maldito (uma porta tão comum como outra qualquer, destrancada por uma chave tão simples como outra qualquer) e o ranger daquela porta (igual ao ranger de qualquer porta velha) pareceu para mim uma cacofonia de ruídos infernais, e o horror daquela visão sinistra (uma escuridão tão densa como a de qualquer quarto com a luz apagada) mergulhou meus olhos nas profundezas brumosas de um sonho mau.

    Meu pai lançara-me para dentro daquele lugar amaldiçoado e trancara a porta que separava o mundo conhecido, repleto de luz, e o mundo incógnito, repleto de escuridão.

    Em total desespero eu tentei abrir aquela porta, num pânico selvagem eu esmurrei aquela porta, chutei-a, lancei-me contra ela, mas meu infantil corpo nada podia fazer contra aquela inexpugnável barreira.

    Após tomar consciência de que seria impossível escapar, sentei-me num dos cantos do quarto, que me dava a impressão de ser pequeno, e esperei... esperei alguma coisa acontecer.

    Minha imaginação infantil povoara aquele lugar de monstros terríveis, semelhantes a polvos, que devoravam todo aquele que ousasse invadir seus domínios. Mas estranhamente não havia tais monstros naquele lugar, nada parecia se mexer na escuridão. Nenhum rugido, nenhum bramido, nenhum gorjeio, nenhuma voz animal eu ouvia ali, e assim o tempo foi passando... passando, e nada, absolutamente nada acontecia. Tanto tempo passou-se assim que, por fim, adormeci.

    Não sei por quanto tempo permaneci adormecido, mas, quando abri meus olhos, uma nova onda de horror banhou-me em suor frio, e o pesadelo, que por um instante pensei que não era tão feroz assim, novamente estava presente, mas agora mostrava-se ao invés de se esconder.

    Escuridão foi a primeira coisa que vi quando abri meus olhos, mas não era uma escuridão comum, não era um bloco contínuo e indivisível como são todas as escuridões, como era a escuridão que eu vira a princípio neste mesmo lugar. A escuridão que eu via neste momento era composta, divisível, articulada; era uma escuridão formada por escuridões. Eu podia distinguir onde uma escuridão acabava e onde uma outra começava. Podia distinguir braços, pernas, troncos, cabeças. A escuridão que vi não era una, mas múltipla, eram sombras individualizadas vivendo em comunidade. Eram dezenas, centenas, milhares. Eram uma família, um clã, uma tribo, uma nação; mas cada uma dessas sombras era diversa das demais, pelo tamanho ou por detalhes ínfimos, e eu não sei por quanto tempo elas estavam ali.

    Eu gritava desesperadamente, e tanto gritei que acabei por machucar minhas cordas vocais e, conseqüentemente, ficar sem voz. E a multidão de sombras esperou meu desespero enfraquecer, ser diluído na torturante fadiga que sentia, depois que elas perceberam que eu não tinha mais forças para gritar, elas me surpreenderam uma vez mais, mostrando-me mais uma de suas habilidades:

    - Meu príncipe, meu príncipe, não tenha medo. Uma delas falou-me.

    Longo foi o tempo que durou meu susto inicial, mas quanto mais a sombra viva, falante, inteligente continuava a insistir para que eu não tivesse medo, mais o medo era substituído por uma curiosidade respeitosa, e se a sombra falava (e o mais importante, falava minha língua) então seria possível negociar diplomaticamente uma saída dali. E isso me fez ouvir a sombra.

    - Meu príncipe, meu príncipe, não tenha medo. A sombra repetia.

    A sombra que parecia ser a líder e que se apresentara com Duque Assombroso tratava-me cordialmente. Logo depois de se apresentar, perguntou meu nome, chamou-me de príncipe novamente e foi me apresentando o restante da realeza daquele reino escuro.

    Os nomes dos nobres daquele lugar eram variações de uma única palavra: Conde Assombrado, Baronesa Sombria, Marquês Assombrar, Visconde Assombração, além do Duque Assombroso pareciam constituir a corte do reino escuro.

Depois de me apresentar toda a nobreza daquele único quarto, o Duque Assombroso beijou-me as mãos e a face como se beijasse as mãos de um verdadeiro príncipe.

    O beijo daquela criatura era gélido, viscoso, lascivo; era como uma ventosa colocada sobre a pele, e foi-me impossível esconder o asco, a aversão e o medo que senti naquele momento. Mas eu suportei, pois não queria deixar de ser diplomático.

    Depois que o Duque Assombroso me beijou, percebi que toda a nobreza do quarto também desejava fazer o mesmo, e logo notei que eles faziam uma espécie de fila para prestar-me tal medonha, mas delicada, homenagem.

    Um a um os nobres vieram e me beijaram, toda a alta e baixa nobreza do quarto escuro me beijou. Às vezes eu me sentia um tanto sufocado por todas aquelas sombras ali, mas suportei, porque suportar era a única coisa que podia fazer.

    Após suportar toda a solenidade oferecida a mim pela nobreza do lugar, pensei que enfim era chegada a hora de pedir, ou até mesmo ordenar, minha saída do quarto.

    Mas a visão que tive assustou-me ainda mais. Novamente o desespero era a única resposta a ser dada à onda de horror que se agigantava diante de meus olhos:

    A plebe do quarto escuro vinha em minha direção pronta para me dar a mesma homenagem que eu recebera da ultra-minoritária nobreza local. Um turbilhão frio, insano e vivo rodeava-me luxuriantemente e não me dava a oportunidade de pensar racionalmente. Meus gritos não eram suficientemente altos para que eu mesmo pudesse ouvi-los, pois além de minhas cordas vocais ainda estarem um tanto machucadas, a multidão sombria que me cercava gritava insandecidamente também, e aquele coral maldito ecoava naquele minúsculo, mas superpovoado reino. Dezenas, centenas (e não poucas centenas) de milhares de sombras circundavam-me naquele momento, cada uma delas desejando abraçar-me, beijar-me, beijos viscosos, gélidos e viscosos, que enchiam minha alma de terror, e aquele medonho coral continuava a ecoar na inexpugnável escuridão que se revolvia delirante ao meu redor:

    - Meu príncipe, meu príncipe, não tenha medo. Todas as sombras me diziam

    Cada uma daquelas incontáveis sombras queria saudar-me, e todas elas saudavam-me da mesmíssima forma: “Meu príncipe, meu príncipe, não tenha medo”. Eu ouvi esta angustiante frase milhões e milhões de vezes, pois as sombras que já me haviam saudado queriam saudar-me novamente, fazendo o turbilhão aumentar cada vez mais.

    A multidão me beijava, me roçava, me abraçava e me pedia para não ter medo, mas era impossível não sentir medo ali.

    Depois de sufocantes momentos amortalhado na mais sombria das mortalhas, ouvi o ranger da porta e vi, muito vagamente como uma estrela solitária na noite, a luz cintilante que milagrosamente encontrara uma brecha entre os não sei quantos milhares de corpos feitos de escuridão densa que me sepultavam. Uma voz vinha lá de fora, chamando-me, era meu pai que me havia perdoado e me restituía o direito de ver a luz.

    Uni fé e desespero e com eles consegui livrar-me do turbilhão atroz. Corri para a luz que fulgurava a minha frente e procurei refúgio nos braços abertos de meu compadecido pai. Minha mãe e minha irmã também me esperavam ansiosamente... e aquele foi o mais caloroso abraço que recebi.

    Enquanto eu me deliciava com o abraço familiar, meu pai, depois de alguns instantes de comoção, disse-me:

    - Meu príncipe, meu príncipe, não tenha medo.

Tópico: "Quarto Escuro", por Orestes Jayme Gama

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Hummm... Não li tal história a comparação alguma... Faz do leitor uma criança com medo do escuro... Um mesmo que arrepiara os sentidos e lembranças de infância... Medo do quarto escuro... Ainda o possuo... Este dom do medo da escuridão não é nada menos que os meus pensamentos... O sonho de perde-lo ainda me comove... Mas é como se eu soubesse: Uma doença,sem cura... Obrigada...

Parabéns

Orestes, parabéns pelo conto, muito bem escrito, com toques pitorescos e com uma narrativa bem formulada. Leitura muito agradável. A estória simples e curta muito bem desenvolvida, parabéns novamente.

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