"O Vermelho Perfeito", por Tiago Alencar
I
A cabeça do pintor latejava irritantemente, na sua grande busca pela perfeição nas suas obras, uma busca que lhe concedeu uma notória fama, ele encontrou a sua fraqueza. Já fazia quase dois dias que o pintor observava sua ultima obra, uma linda e grande rosa. Havia sido fácil encontrar o tom perfeito para pintar o caule da rosa, o chão e até o céu nublado no fundo, mas as pétalas não, as pétalas vermelhas, aquele maldito vermelho no qual ele nunca chegava a se conformar, quantos trabalhos ele já não tinha desistido por culpa daquele vermelho, quantas vezes sua cabeça não chegou ao ponto de explodir devido a sua incapacidade de chegar ao tom perfeito daquela cor, um simples vermelho.
- Não, esse é claro de mais. Esse está quase marrom. Maldição, esse nem vermelho parece. – ele dizia impaciente enquanto tentava todos os tons possíveis da cor.
Fazia dois dias que ele não comia, e o seu corpo começava a sucumbir à fraqueza, mas seu perfeccionismo o fazia buscar forças onde não havia, já tinha sido derrotado muito por aquela cor e não daria esse gostinho a ela de novo, o pintor havia se decido.
- Bem, preciso estar vivo para terminar o quadro é lógico. – falou a si mesmo ao perceber que a falta de alimentação estava apenas piorando as coisas.
Não se deu ao luxo de procurar algo tão elaborado para comer, não tinha tempo, ele resolveu tomar apenas um suco, “apenas para manter as pontas por mais algumas horas”, pensou ele. O pintor tomou uma laranja e uma faca nas mãos. Nunca fora muito habilidoso com nenhum tipo de objeto manualmente (com exceção dos pinceis) por isso geralmente não descascava frutas pois quase sempre se cortava, mas passando por todo esse problema interno com relação a seu trabalho não seria possível que isso ainda viesse a acontecer.
- Ai! – aconteceu. No primeiro movimento com a faca, não só a laranja foi a vitima, mas seu dedo indicador também.
O sangue escorreu da ponta do dedo, as gotas caíram como lágrimas vermelhas sobre a sua mesa de trabalho.
“Por sorte pouco sangue” refletiu ele enquanto procurava com o olhar onde estava sua caixinha de curativos. Então houve uma parada súbita.
- Meu Deus, meu santo Michelangelo – seu olhar estava fixado na pequena mesa de trabalho, enquanto ele achava ser impossível aquilo que seus olhos decididamente viam.
Boa parte do sangue que havia saído de seu corte caíra em uma insignificante porção de tinta vermelha no canto de sua palheta. Agora o pintor via que aqueles dois vermelhos juntos formavam uma cor única, diferente de qualquer outra que já vira, no mínimo perfeita, uma boa quantidade de sangue misturada a uma parcela menor de vermelho sangue. Este era o segredo. O vermelho perfeito. No mesmo instante seu perfeccionismo deixou de manter seu corpo e sorrindo ele desmaiou em um sono profundo, pensando segundos antes de adormecer por completo como faria para conseguir mais desse vermelho.
II
“A virgem de branco caminhava na direção do pintor, seus longos cabelos ruivos caídos sobre seu corpo nu, branco como uma tela crua, tinham um tom vermelho imperfeito, assim como seus lábios e seus olhos. Os dois estavam em um pequeno jardim de flores alaranjadas, a virgem caminhava na sua direção e o pintor sentia-se incapaz de se mover, não que ele quisesse sair dali, ele queria tocá-la ele queria consertar as imperfeições no corpo daquela bela mulher. Quando a virgem chegou próximo o bastante para ele poder sentir a sua respiração, o pintor percebeu que ela trazia um punhal em uma de suas mãos. Ela colocou o punhal nas mãos do pintor, o toque da mulher era frio, quase morto.
- Tome, conserte-me – sua voz era seda, era mel, era perfeição – Por favor.
Quando menos percebeu, ele já passara o fio da lâmina pela garganta da virgem, o sangue saia abundantemente da sua garganta em um vermelho perfeito, tingia seus cabelos, seu lábios, seus olhos e todas as flores ao redor. Tudo se tornou perfeito,
simplesmente perfeito.”
O pintor levantou-se banhado em suor do chão, aquele sonho havia sido assustador, não, havia sido lindo. Ele não sabia ao certo, com certeza os dois. Então o telefone tocou e com ele a sentença e a salvação do pintor.
III
O seu cabelo ruivo jazia sobre o chão assim como o resto de seu corpo, o pintor chorava um pouco, se era por medo ou ansiedade nem ele mesmo sabia. O corpo da mulher inerte a sua frente era aterrorizante, ela morrera com uma expressão tão calma, angelical que até o mais cruel dos assassinos sentiriam que sua passagem para o inferno estava comprada ao ver o rosto da pobre mulher.
À cerca de uma hora, o telefone havia tocado, o pintor identificara de imediato a voz fina com um puxado sotaque inglês de seu cliente, o que havia encomendado o bendito (ou melhor dizendo, maldito) quadro da rosa, ele dissera que não teria tempo de ir visitá-lo para ver a quantas andava a sua pintura, mas mandaria sua secretaria para analisá-lo em seu lugar.
- Ela é uma grande amante de arte, concordarei com o que ela disser- dissera ele.
Mau pressentimento, ele sempre vem como um cara chato, puxando o seu braço e dizendo: “As coisas vão dar errado.” Mas o mau pressentimento na verdade te trata como uma mãe aos filhos, quase que dizendo: “Não vá por esse caminho, as coisas podem desandar para você.” O pintor não soube ver as coisas desse modo, o frio na espinha que subiu como um termômetro dentro de uma chaleira não o fez desistir daquele quadro, desistir de pensar nas possibilidades, idéias que o sonho havia lhe dado.
Não demorou muito para a campainha tocar, e o pintor abrir a porta para a secretaria de seu cliente.
Ela era ruiva.
O pintor perdeu a respiração por uns dez segundos, colocou as idéias no lugar e mandou que ela entrasse. Na sua cabeça o sonho passava obstinadamente, os detalhes um por um, ele olhava para a moça, seus cabelos ruivos (Tão imperfeito), seu batom vermelho cereja (Tão imperfeito), e uma voz na sua cabeça, uma voz que ele tinha de reconhecer mesmo que com bastante vergonha era única e exclusivamente dele, dizia coisas a respeito de que no interior do corpo dela, lá sim havia algo perfeito.
“Sangue, não, sangue, não, sangue, sangue, não, sangue, sangue...”
Sua mente brigava consigo mesmo, mas seu corpo estava exausto, sua mente estava exausta.
“Sangue, sangue, sangue, não, sangue...”
- Muito bom seu traço – disse a secretária analisando a obra, sua voz era baixa um pouco rouca, lembrava tons vermelhos, bem que isso era apenas suposição da mente já danificado do pintor – mas essas pétalas, tem algo de errado aqui, acho que é esse vermelho, esse tom, e como se ele estivesse um pouco... Como eu posso dizer? Um pouco imperfeito.
Não era mais o pintor, “imperfeito”, ele ouvira, sua mente já era um mosaico de partes do sonho com a imagem de seu quadro, tudo vermelho, totalmente vermelho. Ele tomou a faca com a qual havia descascado a laranja nas mãos, apertou seu cabo com tanta força que o pequeno corte no dedo tornou a abrir. Quando se deu conta a lâmina já estava na nuca da mulher, totalmente dentro de seu corpo, e o sangue jorrava vermelho, lindo, perfeito.
IV
Satisfação, o sorriso cortava de leste a oeste o rosto do pintor. O cliente ligara a menos de uma hora, duas semanas após ter recebido o quadro da rosa, “Estava perfeito” ele dissera, “e aquelas pétalas, que vermelho fantástico.” Ele comentara também que sua secretaria havia abandonado o emprego, e que com certeza havia fugido com um namorado motoqueiro que ela tinha.
O pintor se livrou dos pensamentos que o distraia, tinha trabalho a fazer, quadros a pintar, lindas maçãs em um campo de primavera, e o corpo de sua vizinha esperava no chão para ter sua tinta vermelha retirada. “Essas vão ser lindas maçãs vermelhas”, pensou, “Perfeitas.”