"O Último Segundo", por Wendell J. Tellys

    Abro os olhos e uma sensação atravessa a minha alma. É a sensação de que esta é a última vez que os abro.

     Mas não me sinto realmente triste com isso. Tem sido dias bem difíceis, entende? O que acontece, na verdade, é que sei que a culpa é toda minha. Bebi demais aquele dia. Fui com Elisabeth, minha esposa, encontrar velhos amigos em um bar. Ela não bebe, foi apenas para me acompanhar e conversar com o pessoal. Na saída, insistiu para dirigir, mas eu fui teimoso, orgulhoso demais, e não deixei. E agora estou aqui.

     E ela, meu Deus, como ela está? Quando vou ter alguma notícia? Rezo para que esteja bem, mas não acredito realmente nisso.

     Fito o teto branco do quarto. É o único local para onde posso olhar, já que não consigo nem ao menos virar o pescoço. A cama está quase totalmente na horizontal e minha visão do ambiente fica muito limitada. Mesmo assim, sei que o quarto agora está vazio. Nada de médicos ou enfermeiras. Nada de parentes ou amigos. O silêncio seria total, se não fossem os bips dos meus batimentos cardíacos sendo emitidos pelo aparelho à esquerda da cama.

     Há algum tempo atrás (minutos?horas?dias?), em uma das poucas vezes que me lembro de ter ficado em um estado próximo da consciência, vi um médico me olhando por cima. Ele estava com uma expressão preocupada, me examinando. Tomou um leve susto quando vi que eu abrira os olhos. Logo aquela expressão preocupada, profissional, se alterou para algo como se dissesse: “vê o que você fez, seu imbecil?”

     Muito obrigado pela sensibilidade, doutor. Será que pode me dar alguma coisa para a dor agora?

    Ah, a dor. Pensando nela agora, percebo que não a sinto mais. Puf, se foi. E isso só me dá mais certeza de que o fim está próximo. Bem, pelo menos nos filmes, é assim, não é? O sujeito leva um tiro, uma facada, o que for, e, enquanto alguém tenta tranqüilizá-lo (“agüente firme, a ambulância está a caminho”), o cara diz que está tudo bem, nem está mais doendo. E, dois segundos depois, vira a cabeça pra trás e morre.

     Não ouvi o barulho da porta se abrindo, mas sinto que tem mais alguém no quarto agora. Então aquela presença começa a ficar mais próxima, mais próxima... até que entra no meu campo de visão.

     É ela. É a Beth. Olho bem para o seu rosto e está linda como sempre. Eu devia me sentir aliviado, ela parece bem. Mas entre parecer e realmente estar, existe, pelo menos nesse caso, um grande abismo. Sei, subitamente, que ela não sobreviveu ao acidente. Está morta, e veio me buscar.

    Ela sorri para mim. Tento fazer força para dizer algo, mas simplesmente não consigo. Ela coloca os dedos sobre os meus lábios, como quem diz que eu devo me preocupar, apenas ficar calado. Ela me olha mais um pouco e sorri de novo. “Espere só um pouco, meu amor. Só mais um segundo”, diz, ainda sorrindo.

     Vira a cabeça para a direita, olhando para o aparelho de eletrocardiograma que, logo em seguida, começa a soltar um apito contínuo. Claro que eu sei o que isso significa. Meu coração parou. A morte chega como um vento frio passando por mim e, logicamente, não estou falando do meu corpo. Ele agora está vazio, desprovido de vida. E eu sinto que finalmente posso me mexer.

     Levanto o tronco (?) e fico sentado na cama. Olho para ela e o seu sorriso se alarga. Ela está mais bela do que nunca e retribuo o sorriso, mas essa imagem não dura muito. O que acontece em seguida faz um grito se instalar na minha garganta. Ela começa a se transformar. Os belos cabelos lisos se convertem em algo que parece ter a textura de um monte de palha. Passam de um atraente vermelho-fogo para cinza em um piscar de olhos. As suas pupilas, outrora azuis como oceano, se dilatam e escurecem, preenchendo todo o globo ocular com um negro gosmento como óleo sujo de motor. Chagas purulentas se espalham por toda a pele.

     Ela estende as mãos - que agora são garras com unhas pontiagudas - ameaçadoramente para mim. O sorriso se alarga ainda mais, deformando a face já terrível, expondo dentes amarelados e afiados saindo das gengivas inflamadas. O grito por fim sai da minha garganta, cada vez mais alto, mesmo eu sabendo que ninguém pode me ouvir. Ela então se inclina na minha direção, aquele rosto horrendo próximo ao meu. Eu nunca havia sentido um terror como esses em toda a minha vida. O pior de tudo é que não há nada que eu possa fazer. Acabei de passar para o outro lado e não conheço as regras desse mundo.

     Mas, de repente, ela pára e fica ereta. Revira os olhos, como se estivesse escutando alguma coisa. “Maldição”, diz, a voz esganiçada, totalmente inumana. Ainda ao meu lado, começa a perder substância. Olha de novo para mim e sorri. “Não se preocupe. Uma hora ou outra, eu vou voltar”, avisa. Fica cada vez mais transparente, até sumir de vez.

     A porta se abre abruptamente e por ela entram, apressadas, meia dúzia de pessoas, todas de branco. Uma delas abre minha camisa, outra aplica alguma injeção no meu braço. O médico que antes me repreendera com o olhar agora segura as pás de um daqueles aparelhos de choque e o aplica no meu peito. Após a terceira tentativa, ouço o “pi” contínuo do ECG cessar e dar lugar aos bips ritmados, parecidos com o despertador de relógios de pulso digitais.

     Eles conseguiram, me reanimaram. Meus olhos estão fechados novamente e a escuridão volta a tomar conta de tudo. A dor volta a atacar todo o meu corpo, como se alguém enfiasse agulhas bem no fundo da minha carne..

     Mesmo assim me sinto aliviado, como jamais havia me sentido antes.

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Está de Parabéns

Adorei, foi muito lindo mesmo.

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