"O Suicida", por Will Vasconcelos
- Vamos lá, puxe o gatilho.
Um disparo ecoou pelo prédio todo. Logo em seguida um grito de dor. Mas esse grito ninguém escutou. A alma do jovem permaneceu ajoelhada, enquanto seu corpo jazia no chão já confortado em uma grande poça de sangue. A alma sentiu a dor. Desesperadamente se debatia para que a sensação acabasse. Em vão. Tentou arranhar o chão e as paredes. Não conseguiu. Era como se estivesse com graxa no corpo. Suas mãos resvalavam nos objetos. Aos poucos seus olhos foram se acostumando. O mundo ja não exibia todas suas cores.
O mundo a sua volta foi ficando azul e cinza. Frio. Muito frio.
O jovem ouviu um barulho de isqueiro. Ainda tremendo de dor e angustia se virou. Seus olhos correram de encontro a uma figura aparentando entre 20 e 25 anos. Trajava tenis, calça jeans, um camisa de flanela xadrez com uma camiseta por baixo. Um boné vermelho se destacava. Parecia ser a unica cor diferente de cinza e azul nesse mundo novo. Essa figura acendeu o cigarro, tragou, levantou a cabeça e soltou a fumaça. Quando abaixou a cabeça, o jovem suicida viu um brilho avermelhado entre a fumaça.
- Q-q-quem é você...me aju..ajude.
- Já te ajudei moleque.
- C-como?
- De quem você acha que era aquela voz na sua cabeça?? Era minha voz.
- Voc-você veio m-m-me tirar do sofrimento-to?
- Hum... não.
- Por que si-sinto dor? Isso não deveria passar?
A figura se aproximou do cadaver. Enfiou o dedo no orificio que a bala fez na cabeça e suspendeu-o com extrema facilidade.
- Na verdade não. Sua dor fisica passou, não sentes mais a doença te devorando vivo não é?
- N-não - respondeu o jovem impressionado com o que fez a seu corpo - mas sinto tanta dor agora...
- Claro. Você se foi antes da hora...
- Dói... existe hora certa pra isso?
- Claro... mas você abreviou alguns anos de vida...é normal essa dor.
- Não me respondeu quem você é? É meu anjo da guarda?
- Não...achas que um anjo da guarda ia te pedir para puxar o gatilho??
- É...então você é...
- Diabo? Não. Só me mandaram fazer isso com você. Te infligi uma doença. Você aceitou. E aqui estamos.
- Mandaram? Quem mandou?
- E o que interessa? Você morreu... já era... agora vem ..levanta dai. Tenho que ser seu guia.
- Guia?
Os dois deixaram o apartamento. Logo em frente a porta da velha senhora que morava de frente a seu apartamento, o jovem viu pela porta entre-aberta um monstruoso vulto negro a seguindo por toda parte. A figura de boné o chamou e os dois seguiram caminhada até o elevador e depois até a rua.
A grande avenida iluminada se tornou um rio negro e assustador. O céu era de um cinza eterno. O suicida então viu Clara, uma jovem moradora do seu prédio, como sempre cabisbaixa. Sentiu um grande arrepio. Olhando demoradamente pra aquela doce figura, sentiu um desespero. Um bebe, de aproximadamente 1 ano, todo deformado estava montado a nuca de Clara. Sabia que ela tinha perdido um filho a 1 ano. Mas naquela hora ficou claro que "perdeu" significou abortado.
- Assustado? - Perguntou o guia de boné
- Sei lá...assustado, confuso....
- Você ainda não viu nada...
Seguiram caminhada pela avenida. A cidade uma vez brilhante, agora assemelhava-se a uma necrópole. Cinzenta. Fria. Assustadora.
- O que era aquilo com a Clara?
- A criança? É dela...
- Mas o que ela estava fazendo?
- Vampirizando. O mesmo que fiz com você.
- Vai força-la a se matar? Aquele bebe pode fazer isso?
- Se quiser sim... depende mais dela ...
- Como assim?
- Depende dela aceitar aquilo... mas pelo visto é tão fraca que já esta submissa a ele...já era.
O jovem cambaleou. Sentiu como se tivesse acabado de sair de uma luta de boxa. Surrado. Aturdido. Confuso.
Andando pela metrópole assombrada, os dois viram diversar cenas. Um mendigo trazia junto dele 9 vampiros....todos embriagados. Na porta de um boteco, um susto, 5 pessoas vivas estavam lá... pra cerca de 36 vampiros. A cada copo era como se seus contornos negros se tornassem mais forte. Uma protistuta cadavérica acompanhava uma jovem que trazia a Biblia agarrada ao peito. A criança chorava até perder o folego. " Ela está vendo" disse o guia, referindo-se a uma enorme figura negra que sussurrava ao ouvido da mãe. Logo em seguida o jovem sentiu a dor da criança em cada palmada recebida pela criança. E enjoou ao ver o sorriso macabro da enorme figura negra.
- Estou com fome...
- Escolha uma vitima.
- Não vou fazer isso...
- Então não reclame. - disse acendendo outro cigarro com um zippo prata com um desenho ja gasto de uma pin-up.
- Não me disse seu nome e nem aonde está me levando.
- Me chame de Sete. Logo verá aonde estou te levando. É seu destino.
- Hummm...carne frescaaaa!!
A voz gutural pertencia a outra grande criatura trajada toda de preto, apontando para o jovem, que se encolheu atrás do guia.
- Des-desculpe... me desculpe... não vi que já tinha dono. - se desculpou o gigante após o guia tomar a frente enquanto baforava.
- O que aquilo queria comigo.
- Queria você. Terminar o serviço. Sua essencia.
- Essencia? Minha alma?
- É. Não é por que não está mais vivo que não gera energia. Errantes como eu e você também sentimos fome.
- ...
- Que foi... desapontado?
- Talvez...
- Esperava o que? Um tunel de luz? hahaha
A cidade ja estava acabando, quando se depararam com um acidente. Uma forte luz estava ao lado do carro destroçado. A criança,
cujo corpo estava estendido ao lado do carro estendeu a mão para a luz e sumiu. A luz incomodou deveras aos dois errantes.
- Sete...não aguento mais de fome... não aguento mais...preciso comer...
- Vá...
O suicida saiu cambaleante em direção ao acidente. O motorista ainda vivia. Junto do homem, uma sombra foi se tornando definida. Um homem grande totalmente embriagado. Levantou um copo em sinal de brinde ao hospedeiro humano. O jovem estava hipnotizado. Ignorou o forte cheiro de bebida. Enfiou a mão dentro do peito do motorista acidentado e sugou seu ultimo suspiro. O acompanhante embriagado do motorista se irritou.
- Cão maldito!! Ele era meuuuu!! Faz...faz 39 anos que estou com ele. 39 anos de alcool e você seu imprestavel filho duma puta me tirou o direito de tomar o ultimo suspiro dele!!! Malditooo!!
O jovem se voltou rosnando para o errante embriagado. Este por sua vez, recolheu o espirito do homem, que chorava agora em cima do corpo do filho de 6 anos todo ferido e ensaguentado, e levou ele a um boteco na outra esquina, onde ambos atormentariam outros humanos que viviam lá. Quando caiu em consciencia, o jovem sentiu nauseas. Como podia ter feito aquilo?? Não entendia. Não queria entender! Se tornou como seu guia. Não, a seu guia ao menos alguém tinha encomendado. Era pior que ele. Seus pensamentos o massacravam. Quando a voz do guia o trouxe de volta aos limites da metropole.
- Vamos...já estamos quase lá.
A cidade ficou para trás. Agora um chão de terra. Terra essa que exalava um cheiro podre. Terra vermelha forte. Um vermelho natural. O mais natural do mundo. Vermelho-sangue. Seguiram calados. O guia a frente. O jovem e atormentado errante suicida logo atrás afundado em pesamentos. Caminharam em silêncio. Era como a madrugada. Escura, fria e solitária. Mesmo com Sete logo a frente, o jovem suicida se sentia sozinho. Como sempre se sentia enquanto vivo. Sozinho. Sem ninguém. Sem rumo. Só dor. Um estranho zumbido começou a ser ouvido. Finalmente chegarão.
O jovem nunca tinha visto uma árvore como aquela. Negra. Imensa. Seca. Retorcida. Raizes enormes. Expostas, para logo depois se aprofundarem na terra. Terra agora exibia um outro tom.
- Chegamos. Não olhe para baixo depois de passarmos por aqueles dois ali. - disse Sete apontando para dois homens trajando negro e possuindo grandes lanças em suas mãos. Eram magros e altos.
Ao se aproximar deles, o jovem viu seu guia sauda-los. Estes responderam ao guia com grande reverencia. Sete fez o sinal para que o acompanhasse. Ao passar pelos guardas pode reparar que seus rostos era na verdade, apenas ossos. Ossos queimados. Se apressou para alcançar Sete.
Caminhavam com dificuldade em direção a grande árvore. Não estava entendendo. O zumbido foi se tornando mais e mais alto. Ensurdecedor. O caminho cada vez mais acidentado. Seguia a risca a ordem de não olhar para baixo. O barulho o deixava tonto. Pararam.
- Eis seu destino.
- É aqui?
- Sim...meu trabalho terminou.
- Mas o que eu faço aqui??
No alto da arvore, uma figura corcundo observava os dois de seu trono. Desceu. Trazia consigo cadeados e correntes. Mas apenas uma chave.
- Cumpriu mais uma vez sua parte Sete. - Disse o velho das correntes.
- Sim senhor. Agora vou voltar. Tenho assuntos a tratar. Peço sua licensa para me retirar senhor.
- Pode ir.
O jovem assistiu a tudo aquilo. Não entendia. Para onde Sete ia? Estava sendo deixado só novamente?
- Vocês dois!! Tomem conta do nosso novo inquilino. - Ordenou o velho já subindo na árvore, após entregar uma corrente a chamava um sujeito que mancava da perna esquerda. Quando o jovem se deu conta, o outro ajudante, já o tinha dominado e com extrema facilidade o jogou ao chão. Então ele finalmente viu o chão. Raizes. Zumbido. Homens. A árvore estava vivendo num chão de homens. O chão era só homens. Todos choravam. Resmungavam. Amaldiçoavam. Era o zumbido. O choro de milhões que ali jaziam. Que tinham seus corpos perfurados por raizes. Raizes que sugavam suas essencias. Era por isso o aviso!
Subjugado. Acorrentado. Ao jovem só restou ver os cascos, que eram os pés do ajudante que o prendeu, o riso sacana do que mancava , o olhar severo do velho no trono, e ao longe Sete, sumindo no horizonte em busca de mais um errante que precisava pagar sua penitencia. Estava só novamente. E não havia nenhuma pistola para aliviar a sua "dor".