"Minha Vida Com Beca", por Indaiá Melo
Sei que pode parecer irrelevante, mas minha vida ganhou sentido quando parei, por alguns instantes, para observar as pessoas caminhando pelas calçadas da capital. Tudo tão rápido, tão impessoal, tão decadente... tal qual a vida. Sorri um sorriso ameno, sem mostrar dentes, para a senhora de olhar triste que passava como quem não quer nada, mas, ao mesmo tempo, espera tudo – mesmo que pouco – que a vida ainda pode lhe dar.
É tudo que nós, reles mortais, intentamos de nossa “triunfante” jornada: que passemos depressa, às vezes desapercebidos, às vezes deixando marcas. Pode parecer pretensão, mas te digo que vivemos tentando dar sentido a um fenômeno complexo e inexplicável, cujo valor é incalculável, apesar de que, para alguns, valha pouco. A vida é bruta com muitos, mas não passa de um pássaro delicado, e cabe a nós decidir quais voos devemos alçar. As direções são muitas, mas há sujeitos que deixam-se prender em gaiolas ínfimas, na promessa de segurança. Cortam-se as asas, perdem-se os sonhos.
Fui criado simplesmente, com sonhos curtos e olhares repressores a registrar meus passos. Não me ensinaram a voar, e, quando pude tentar, foi-me dado o pátio como limite. Não pode isso, não pode aquilo. Foram tantos “não” que já perdi as contas. Invariavelmente hesitante, inevitavelmente escrupuloso. Segui até aqui com passos curtos, cabeça baixa, falando baixo e sorrindo pouco. Mas hoje confesso já não ser o mesmo.
Costumava culpar aos que deixavam-se enredar por máscaras, mas percebi que também as usava. Parece tão mais simples, mas não é. As máscaras, em algum momento, tomam conta do teu ser. Quem viveu até meus vinte e dois anos foi um alguém sem vontade, que escondia suas preferências; um alguém que dizia “sim” quando, internamente, todas as fibras de seu ser gritavam “não”. Mas não mais.
Eu tinha um medo escandaloso de parecer ridículo, sem perceber que ridículo é viver de enganos. Hoje sou ridiculamente escandaloso. Em um mundo de hipócritas, não há necessidade de mais um. Chega! Rompi as barreiras do meu quintal e fui caminhar – voar – pelo mundo. Sem amarras, sem receios; só eu e minhas vontades. O que busco agora não é compreender o sentido da vida, mas sim dar a ela o meu sentido.
Nas minhas andanças, tive oportunidade de conhecer muita gente diferente. Dissimulados e inconsequentes, hediondamente graciosos, empáticos e formosos. Mostro-me, também, sem dó ou piedade. De personalidade inconstante, sou também o pássaro que voa contra o vento, na direção oposta à do bando. Faço apenas o que me vem à mente. Isso até conhecer Rebeca. Nem o mais doce mel é comparável ao olhar eloquente de Beca. Seu temperamento viciante me ardia as narinas.
Jamais havia amado alguém de forma tão assustadoramente leve e perigosa! E sei que ela também me amou desde o primeiro instante em que nossos olhares se cruzaram. Nunca fui um romântico, mas soube que, a partir daquele dia, estaria perdido sem aquele anjo zombeteiro. Sem ao menos uma palavra, beijei-a com fervor. Uma reciprocidade inebriante. Não me ocorreu suspeitar que esse fora um caminho sem volta; a perdição dos meus dias.
Eu e Beca juntamos tudo – o pouco – que tínhamos. Foram dias surpreendentemente fascinantes, e exaustivos. Tanto amor esgotou-me, já não tinha forças para nada que não amá-la. E ela dedicava-se tanto, mas às vezes sumia. Eu não entendia o motivo de tantos segredos. Como disse, mostrava-me, e mostro-me, tal como sou. Ela sumia com meus sonhos, carregando meu coração nas mãos. Certo dia, devastado, vi a pequena passar e segui-a sorrateiramente. Precisava – e achava-me no direito de – saber para aonde corria meu amor. Perdi-a em algum momento, e oxalá tivesse desistido dessa minha busca.
Foi com dor no peito que vi minha Beca entrando naquele beco sujo, com olhar enlouquecido e lábios murmurosos. Nas mãos, a doce criatura trazia uma faca embebida em sangue. Ela puxou a mochila das costas com asco e tirou dela partes do que parecia um corpo. Começou a atirar aqueles pedaços de carne em um tonel de lixo com muita naturalidade, num balé bárbaro e intrigante. Após a dança macabra, tirou de um bolso algum líquido e uma pequena caixa com fósforos e ateou fogo aos restos do desconhecido.
Voltando-se à faca, há pouco deixada ao lado, sentou-se cruzando as pernas. Riscou traços indefinidos no pútrido solo, distribuiu velas de diferentes cores e mais alguns objetos. Cortou-se nos braços, enchendo com seu rubro néctar a fina taça à sua frente, e tirou algo da mochila. Um coração! Colocou o órgão sem vida em uma bandeja e começou a murmurar um canto em uma língua que desconheço. Com malícia pura nos olhos, pegou o coração nas mãos e começou a comê-lo, bebericando do vinho de suas veias com surpreendente prazer.
Terminada a refeição encarnada, minha doce e amada Beca limpou com as mangas os cantos da boca e tentou alinhar a roupa que cobria-lhe o corpo. Então, o pior aconteceu: ela percebeu que seu ato secreto havia sido descoberto por mim. Enfurecida, veio ao meu encontro exigindo explicações. Eu estava atônito, não consegui gesticular uma só palavra. Ela começou a derramar lágrimas de sangue, falando coisas sem sentido, como que querendo se explicar. Ao ver que de mim só conseguiu incompreensão, partiu para atacar-me com sua aguçada faca. Pequena como era, tirei-lhe a arma com extrema facilidade e, em um ataque de fúria, rasguei-lhe o peito, arrancando com esmero seu lindo coração.
Ao perceber que minha Beca jazia sem vida, uma tristeza medonha invadiu-me o peito. Entendi que a única forma de tê-la sempre comigo seria carregar-lhe no peito, junto ao meu coração. Comi com ternura o presente tirado de minha amada. Quente, doce, viscoso. Procurei deixar o mais limpo possível aquele palco de cenas tão fortes e tratei de queimar os restos de minha mimosa. Partimos, eu e Beca (agora em mim), para casa, a mesma em que ainda vivo. Nunca mais provei de carne humana, pois não conseguiria conviver com os restos de desconhecidos dentro de mim. Minha Beca me basta, me preenche.