"Engrenagem", por Orestes Jayme Gama

    O despertador dispara, está na hora de acordar e me preparar para o trabalho. A vida é difícil, o mundo para os vencedores, ninguém se importa com os derrotados.

    Vou aproveitar minha hora de almoço para estudar um pouco, preciso me preparar para ser alguém na vida. Se eu não tiver muito dinheiro e um bom carro serei um perdedor, e como já disse: o mundo não é para eles. O sono é grande e o sonho que tinha era tão belo que parecia revelador. Talvez se eu tivesse continuado a sonhar iria desvendar um grande enigma, algo sobre mim mesmo que eu mesmo não conheço...

    Já chega!!!. Estou pensando como um daqueles malucos. Tudo isso é besteira. O mundo não é feito de sonhos, mas sim de suor e trabalho, a vida não é nenhuma ilusão, a vida é nascer, crescer, trabalhar, envelhecer, se aposentar e... estou atrasado. É hora de partir.

    O caminho para o trabalho é longo, quarenta minutos de congestionamento num carro que já tem cinco anos (preciso de um novo). Não há tempo para ler os letreiros, se eu chegar atrasado, serei mal visto pelo meu chefe e isso é imperdoável, por mais idiota e grosseiro que ele seja, ele é superior a mim. No fundo eu o admiro, pois ele trabalhou e estudou muito e não perdeu seu tempo com besteiras, por mais estúpido que ele seja, ele ainda é um exemplo a ser seguido, um bom exemplo para mim mesmo. No futuro talvez eu seja como ele, estúpido e grosseiro, atarefado como nunca antes, mas com um ótimo salário.

    Veja só aquele homem, aquele é... Hippie, é... vamos chamá-lo assim. Ele só fala besteiras, coisas sobre transcendência, sobre alma e sobre liberdade. Hum... se ele é tão bom nisso, nesse negócio de transcendência, porque ele não transcende esse estado de perdedor e passa para o outro lado? Liberdade? liberdade é ter dinheiro, um belo carro e ser normal, não um esquisitóide como este aí, que não passa de um motivo de chacota, porque ele não pára de falar essas coisas? Ninguém o ouve mesmo. Tolo desprezível, que prazer existe em ser totalmente diferente dos demais? Que prazer existe em andar na contra-mão da História, não seguir as convenções sociais, se afastar da sociedade mesmo estando inserido nela? Qual é o prazer de usar roupas diferentes e pensar diferente se isso só vai trazer desaprovação do resto das pessoas?

    Esses excêntricos na verdade não passam de loucos de segundo escalão, eles deveriam estar em hospícios, está mais que provado que essas pessoas não têm condições de conviver no mundo moderno e que o isolamento seria um bem não só para elas, como também para nós, pois eles representam perigo com suas idéias de abnegação em relação ao dinheiro e todas as benesses que o dinheiro trás consigo. Além disso, há o problema de alguns jovens se sentirem atraídos por suas idéias malucas. Na maior parte das vezes, os jovens atraídos para essas doutrinas de negação do dinheiro, e portanto do mundo moderno, são aqueles que experimentaram derrotas na terrível competição que é a vida e então tentam escapar a qualquer custo do sistema.     Quando esses jovens desiludidos encontram esses malucos que insistem em lutar contra a maior invenção do homem: o dinheiro, eles entram para o mundo da lua e começam a sonhar com utopias tais como: socialismo, comunismo, anarquia e outras besteiras contrárias à vida moderna.

    Eu me alegro de ser uma pessoa normal, me alegro de usar as mesmas roupas, o mesmo corte de cabelo e ter os mesmos gostos das outras pessoas. As minhas idéias são iguais às dos grandes homens que conhecemos como patrões, meus sonhos para o futuro são idênticos aos dos grandes capitalistas (ganhar mais e mais dinheiro), meu modo de falar e meu modo de agir seguem o padrão definido para as pessoas vencedoras, portanto, ricas, e, não importa aonde eu vá, logo me mesclo à multidão, porque na verdade eu e a multidão somos um só, e nessa multidão não há espaço para a individualidade de cada um, somente o padrão deve existir. Ninguém na multidão gosta de se expor e de ter algum comportamento que agrida ao padrão de normalidade ditado pela maior força que existe no mundo: o mercado.

    Cheguei onde eu queria, meu trabalho, agora é hora de mostrar serviço.

    O trabalho é estafante. Horas e horas diante de um computador. Este cargo de administrador está me matando. Daqui a pouco terei que ir para a universidade, eu não quero mais ler nada, não quero mais pensar em nada, estou com sono e só quero descansar, mas não posso, o dever me chama, meu orgulho me impele a continuar, a vencer na vida, progredir, avançar e ir para o curso de Administração e completar os três meses que ainda me separam do diploma.

    Meu dia de trabalho chega ao fim, mas ainda há uma coisa a fazer. Como em todo fim de expediente, pergunto ao meu chefe se ele precisa de mim para alguma coisa que ainda falta ser terminada, sempre espero uma resposta afirmativa, pois assim terei oportunidade de mostrar mais serviço e, quem sabe, ser promovido, ganhar um salário melhor, ser considerado o funcionário do mês (por cinco vezes já o fui) e, com tudo isso, ter o status social e o carro que um vencedor merece.

    Sempre há algo a ser feito. Há sempre um trabalho extra para se realizar e é quase sempre eu que o realiza. Quarenta e cinco minutos depois do expediente normal eu deixo meu local de trabalho, não necessariamente para descansar, mas para estudar para ser ainda melhor no que faço, para adquirir conhecimentos que possam ajudar a empresa em que trabalho a ter mais lucro, para mostrar a meus chefes e a meus patrões que sou um excelente empregado, um colaborador eficaz, um dos melhores profissionais que o mercado de trabalho oferece.

    No curso de Administração de Empresas estudo com afinco, não pelo simples fato de conhecer um processo, entender uma teoria, mas estudo para usar na prática aquilo que aprendi, pois sem pragmatismo não se consegue lucro, e quando não se consegue lucro (em cada uma de nossas ações) não se é nada. O lucro é a sagrada recompensa pelo esforço, é o fruto da árvore do trabalho, é o “fator insubstituível de desenvolvimento em qualquer sociedade”, é a finalidade de toda empresa, e como são as empresas que movimentam o progresso da humanidade, então, eu, como um excelente trabalhador, devo lutar com todas as forças para que a empresa onde eu trabalho lucre o máximo possível, pois assim estarei ajudando a humanidade a evoluir.

    Além de tudo isso, se eu estudar com afinco e conseguir dar à empresa onde trabalho mais lucro que o Orlando (meu colega de trabalho e, portanto, meu competidor feroz pelas boas graças do patrão), então eu vencerei a disputa, serei promovido, o verei ser despedido (não que eu tenha desejo que isso aconteça, mas o mercado é inflexível e quem sou eu para discordar) e, sendo promovido, terei um salário maior, e tendo um salário maior poderei consumir mais, e consumindo mais, comprando mais, serei mais feliz.

    Felicidade? Felicidade é um carro do ano na garagem, um excelente DVD, tv a cabo, um bom computador, internet rápida, passear com a namorada no shopping center, comprar um celular novo para ela no dia dos namorados, comemorar meu aniversário num salão descolado, convidar os amigos para “jantar” no Mcdonald’s, nos feriados prolongados descer para a praia, passar as férias (ah! Seu eu pudesse) na Disneylândia, comprar roupas da moda, ir aos cinemas e assistir os sucessos de Holywood, adquirir algumas ações (estou planejando isso) na bolsa de valores e saber que se é um excelente profissional, o profissional que todas as empresas gostariam de ter, o profissional que todo patrão gostaria de empregar.

    Volto para minha casa orgulhoso por ser um homem bem-sucedido, um dos poucos brasileiros que têm acesso ao curso superior, um dos relativamente poucos brasileiros que ganham mais do que dois mil reais por mês (isto porque tenho somente vinte e dois anos, no futuro ganharei muito mais), um dos poucos brasileiros que possuem qualificação profissional suficientemente forte para disputar uma vaga de trabalho nas maiores empresas do mercado. Sou alguém que trabalha ao lado dos mais bem sucedidos executivos e empresários do país. Falo inglês fluentemente e entendo de informática como poucos. Enfim, se ainda não sou, em breve serei “elite”.

    Vou dormir com a consciência de que o mundo me pertence...

    O despertador dispara e me acorda para mais um dia de batalhas, conquistas... lucro. Sou um vencedor e nada no mundo mudará isto. O sonho do qual despertei é a confirmação de minha vitória... venci no mundo.

Meu sonho? Rodas dentadas giravam laboriosamente em seu trabalho e faziam outras rodas dentadas girarem de maneira semelhante num processo irresistível. Algumas rodas dentadas giravam mais rápido que outras mas, assim que as outras percebiam que estavam perdendo, giravam mais rápido também, e todo este movimento fazia com que uma grande máquina se movimentasse atrás de um objetivo, uma meta.

    Vou para meu trabalho com a consciência de que sou parte deste movimento irresistível. Sou alguém importante, um vencedor, sou uma fonte inesgotável de lucro para meu patrão... estou orgulhoso...

    Sento-me diante do computador e começo a trabalhar com um afinco implacável. Quero ser visto por meu chefe, quero provar para ele que sou o melhor, quero que os acionistas desta grande empresa saibam que sou uma peça rara...

    A tela do computador mostra uma lista de clientes importantes. Com um leve movimento de meu braço direito, direciono o mouse até um dos nomes para obter mais informações. Mas algo estranho acontece. De uma maneira inconsciente eu percebi que não foi meu braço que movimentou o mouse, mas foi o mouse que movimentou meu braço. E não só meu braço. Parece que todo meu corpo atende ao comando de uma força invisível e insensível que movimenta não só o mouse, mas o computador inteiro e também todas as outras máquinas que existem aqui na empresa. E esta força insensível parece não só dominar as máquinas, mas também a mim e a todos meus colegas de trabalho, meu chefe, meu rival, meus subalternos, os acionistas da empresa, meu patrão. Parece que o mundo inteiro está de joelhos diante desta força tirânica. Com minha mente ainda absorvida por uma reflexão profunda, continuo analisando a natureza desta força alienante que, agora tenho consciência, me escraviza desde quando eu nasci...        

    Uma intensa repulsa de mim mesmo domina minha mente. Agora sei o que realmente sou, agora sei o real significado do meu sonho da última noite: sou uma máquina despersonalizada que nada mais faz a não ser seguir um padrão alienador há muito tempo estabelecido. Meu sonho nada mais era do que a revelação da verdade... sou uma roda dentada movimentando outras rodas dentadas e sendo movimentada por outras rodas dentadas na engrenagem pérfida de um mecanismo insaciável que é capaz de destruir tudo o que existe e mesmo assim não ficar satisfeito...

    Agora eu sei: eu não venci no mundo... eu fui vencido por ele.

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