"A Partida de Xadrez", por Glauco Schneider

Alemanha.  Final do século dezenove.

 

Walter Schultz aguardava, em meio ao nevoeiro espesso da estação, o trem da meia noite, que o levaria a Hamburgo. Fazia bastante frio:  15 graus centígrados negativos. Porém a espera não foi longa. Enquanto esperava, Walter não viu nenhum outro passageiro ou mesmo empregado da estação na plataforma. Melhor, não escutou vozes ou passos ou murmúrios ou ruídos quaisquer, porque a névoa não permitia distinguir nada a mais de um metro de distância. Walter escutou o apito do trem, mal avistou uma porta que se abria. Não viu ninguém dentro do trem. Embarcou.

 

Acomodou-se na primeira cabine vazia que encontrou. Estava bastante cansado e sonolento, após uma semana dura no escritório de contabilidade. Aguardou, fumando e folheando entediado um jornal, a visita do funcionário que pediria o bilhete da passagem mas, como este não viesse, adormeceu.   Teve um pesadelo breve, em que homens vestidos com mantos brancos, usando máscaras venezianas, untavam de petróleo um gato amarelo, e depois ateavam fogo no pobre animal que, agonizava horrivelmente. Isto fez Walter despertar, em sobressalto, suando, embora fizesse muito frio na cabine, mesmo debaixo da coberta de lã sob a qual se abrigara. Não acordou apenas sobressaltado, mas também com uma premonição íntima, vaga e difusa.  Saiu do reservado e passou a andar pelos corredores, de vagão a vagão, insatisfatoriamente iluminados por lamparinas a gás, dependuradas às paredes.  Não havia vivalma em vagão nenhum.  Cabines, poltronas,  tudo vazio, coberto de pó apenas.  Só aqui e ali, sopros gélidos de vento entrando pela fresta de alguma janela entreaberta.

 

Walter afinal chegou ao vagão restaurante, o último da composição de vagões. Também ali tudo estava deserto. Exceto por uma inusitada presença que, a princípio, passou despercebida ao viajante.  Tratava-se da parte visível , da parte superior, cintura para cima, de uma esqueleto, sentado a uma das mesas ao fundo do carro restaurante, junto a uma das janelas. Walter , perplexo, sentiu que seu sangue se enregelava.  Mesmo assim não perdeu sua capacidade de observação. De pé à entrada do vagão, observou longamente o esqueleto, e terminou por perceber que ele estava vivo, algo animava seus movimentos. Sim. Porque, mesmo lentamente, o esqueleto movia braços e mãos descarnados, ainda que mantivesse a cabeça sempre voltada para a janela, como se contemplasse fixamente um ponto  na pradaria congelada lá fora do trem, um ponto cuja importância ou beleza não pudesse perder de vista.  O esqueleto, sempre com a cabeça imóvel voltada para a janela embaçada, de raro em raro movia as mãos e braços e acendia, com uma caixa de fósforos, um cigarro após o outro, e a fumaça tragada ridiculamente lhe saía pelas fendas ossudas da caixa torácica e costelas. A fumaça lhe saía até mesmo pelas órbitas vazias e escuras e soturnas dos olhos, ou melhor , das cavidades onde alguma vez houvera olhos, na cabeça escaveirada.

 

O esqueleto adotava por vezes uma atitude, um ar contemplativo, ou parecia devanear, enquanto segurava o indefectível cigarro entre as falanges secas, brancas e ossudas da mão esquerda.  Contudo, com o braço direito ligeiramente erguido, com a mão direita tamborilava lenta e como que preguiçosamente a superfície gelada e embaçada do vidro da janela a seu lado, fazendo soar um lúgubre eco no silêncio do restaurante vagão deserto, silêncio apenas cortado pelo matraquear intermitente das rodas do trem nos trilhos.

 

Walter continuou imóvel e perplexo, sem ação, à entrada do carro restaurante. Então, o esqueleto, como se já soubesse  há muito de sua presença ali, sem voltar o rosto da janela, fez com a mão descarnada esquerda erguida um gesto explícito, convidando-o a aproximar-se.  Walter, trêmulo, sentou-se diante do esqueleto, que então o fitou em cheio, face a face. Do vazio das órbitas parecia brotar um frio mais frio que qualquer frio concebível. E o esqueleto falou, laconicamente, com uma voz cavernosa, grave, porém baixa, que denotava um certo cavalheirismo e boas maneiras gentis:  “Comecemos a partida. O resultado decidirá acerca do destino, da Fortuna. “  Só então Walter reparou que sobre o tampo da mesa em que se apoiavam os cotovelos do esqueleto havia um tabuleiro  de xadrez, com as peças prontas para iniciar uma partida.  A Walter couberam as peças brancas. Porém a partida foi rápida. Fulminantemente rápida.  O esqueleto era um exímio, um mestre imbatível na arte do xadrez.  Porém o vencedor não disse xeque-mate. Ficou em distinto silêncio.  Simplesmente, com a ponta ossuda do dedo médio da mão direita, derrubou o rei branco de Walter. Estava acabado. Então o esqueleto afirmou, peremptoriamente, irresistivelmente: “Sr  Walter.  Eu lhe concedo, a Fortuna lhe concede  seis meses de vida.  Passe-os onde quiser. Da maneira que lhe aprouver.  Não lhe faltará dinheiro . Vá a qualquer banco do mundo, pronuncie o seu próprio nome completo, e encontrará sempre sua própria conta repleta. Contudo, passados seis meses, o Sr estará morto, sem direito a apelação”.

 

Sem saber direito como, Walter voltou cambaleando para uma cabine qualquer. Encontrou em sua maleta alguns soníferos, que engoliu com um tanto de água, e dormiu.  Acordou a tempo de desembarcar em Hamburgo , já ao alvorecer.  Foi a um banco.  Verificou que era, de súbito, um homem muito rico.  Então, viajou para Nápoles, abandonando seu emprego.  Lá, viveu durante cinco meses e vinte dias, a escrever um pequeno e precioso livro de fábulas fantásticas jamais visto antes ou depois dele, em versos não rimados, de fato uma preciosidade. Ressaltava nas fábulas um estilo muito harmonioso e belo, amparado por um espírito cético, mas sábio, espirituoso e cheio de graça. Pouco antes do final do prazo que lhe havia sido concedido, Walter enviou pelo correio, a um amigo na universidade de Oxford, em quem confiava,  os originais de seu livro. Este amigo, sem saber direito o que fazer com os originais, pois era um professor muito atarefado, confiou-os à biblioteca da universidade. Lá ficaram, imóveis e criando poeira e teia de aranha, em uma estante perdia da biblioteca , os originais do livro de Walter, durante os próximos cinquenta e sete anos, até que, passado este período, o texto foi descoberto por um bibliófilo perito, e publicado, com razoável sucesso de vendas.

 

Mas voltemos a Walter. O que ele fez nos seus últimos dias, antes de expirar o prazo de seis meses?  Ora, ele teve a ideia de voltar a Berlim, à mesma estação em que, no rigor do inverno, tomara no meio da noite aquele estranho trem fatídico.  Desta vez era pleno verão. E de dia. Ao meio dia ele embarcou. Na mesma estação, agora lotada de passageiros e carregadores com malas e pacotes.  A custo Walter conseguiu uma cabine exclusiva para si.  Foi, depois de fumar vários cigarros, dificultosamente, até o vagão restaurante e, observando a mesma mesa de fundo em que travara a partida de xadrez com o esqueleto, viu assentados nela um casal jovem, o homem talvez um executivo, calça frisada e paletó preto impecável, cabelo loiro liso, rosto viril e sereno, nariz grego, a esposa com uns olhos azuis belos , brilhantes, muito loira, cabeleira longa cacheada, linda, levando ao colo uma menina muito parecida com ela, também loira e de olhos azuis, mas com o nariz grego do pai.  Walter observou isto num átimo, e logo voltou à sua cabine.

 

Fumou mais cigarros. Leu com interesse e agrado alguns capítulos de um bom romance, quando de súbito um homem, feições muçulmanas, mas usando traje ocidental, entrou na cabine e sentou diante de Walter, que não esboçou protesto e continuou a ler e fumar.  O estranho visitante, nervoso, agitado, reagindo inesperadamente ao silêncio de Walter, diz, num rosnado baixo e mal reprimido, ao mesmo tempo em que entreabre o paletó, mostrando um cinturão de bananas de dinamite atado em torno de sua barriga, o muçulmano diz:  “Em nome do sagrado Profeta, eu irei agora até a locomotiva e a explodirei junto com meu corpo, quando o trem for atravessar a grande ponte sobre o abismo, e nada neste mundo me impedirá”.

 

“Eu tenho certeza disso, senhor”,  respondeu calmamente Walter ao louco diante de si e, quase sem querer, depois de ter acendido um novo cigarro e mantê-lo na mão esquerda, com a ponta dos dedos da mão direita  passou a tamborilar vagarosa, preguiçosamente no vidro da janela, enquanto seus olhos contemplavam, não sem certa melancolia, devaneavam, fitando a paisagem de campos verdes férteis que o trem ia progressivamente deixando para trás.

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