"A Casa da Estrada", por Tunico Senna

    Um caminhão parou no acostamento um pouco antes da curva. O barulho dos freios ecoou estrada adentro como um grito forte e seco.

    Pendurada sob o pára-choque traseiro, uma placa de madeira trazia a inscrição: A CASA DA ESTRADA.

    O farol se apagou e a luz da boleia bruxuleou lentamente.

    Logo abaixo, beirando o acostamento, um vulto avançou rápido pelo matagal. Ao longe, um cachorro latia insistentemente.

    A porta destravou-se e abriu devagar. O vulto de uma mulher magra e alta deslizou pelo asfalto, e como um raio, invadiu a boléia trancando a porta cuidadosamente.

    A luz fraca e trêmula, no interior do caminhão, misturava-se com o vermelho escuro dos bancos de veludo. Dependurada sobre as janelas, uma cortina de renda empoeirada, escondia a noite e transformava a boléia em um dos mais assustadores cômodos daquela casa.

    Um crucifixo arrebentado pendia sob o retrovisor.

    Sobre o chão, uma garrafa de vidro.

    Sobre o painel, guimbas de cigarro.

    Ao volante, um homem instável.

    Ao seu lado, uma mulher triste e sem sorte.

    Já fazia algum tempo desde o dia em que se conheceram. O primeiro encontro, havia acontecido logo após o aparecimento da primeira placa:

    CUIDADO!

    Não era uma daquelas placas oficiais que se costuma encontrar pelas estradas. Ela era estranha. Tinha uma cor estranha, um formato estranho. Escrita sobre um pedaço qualquer de madeira, parecia ter sido feita à mão. Uma tinta grossa e avermelhada havia escorrido de algumas letras e percorrido um longo caminho por entre os sulcos da madeira, dando-lhe um aspecto assustador. Pregos grandes e enferrujados prendiam a placa sobre um longo e retorcido pedestal. Fincada sobre o acostamento logo depois de uma curva, lembrava um enorme espantalho marrom.

    Ela havia sentido cheiro de bebida logo assim que entrou no caminhão. Tentou segurar-se por um momento, mas não conseguiu resistir, então, comentou sobre o assunto. Infelizmente.

    — Você andou bebendo de novo?

    — Claro que não... — falou lento e descompassado.

    Ela abaixa a cabeça e percebe a garrafa caída sobre o tapete.

    — Antigamente você não bebia assim, sabia? — diz a menina.

    — Vai começar de novo? — Ele pigarreia e continua. — Se eu to falando que não bebi porra! É por que... eu não... bebi!

    Ao longe, era possível ouvir o barulho de um carro se aproximando.

    — Ta bom, me desculpa. Eu não vou mais falar sobre isso. Eu prometo. Mas... — Ela abaixa a cabeça novamente. — a gente precisa conversar.

    O caminhoneiro suga toda a porcaria que lhe incomodava as vias aéreas e como um tiro, às lança através da janela. Neste momento, um outro caminhão rasga a estrada. Seu barulho, entes inofensivo à distância, se tornara agora tão estridente quanto à turbina de um avião.

    O vento forte e frio, lançado pelo caminhão, balança as cortinas de renda e esvoaça brutalmente o cabelo fino e delicado da menina.

    Uma nuvem densa de fumaça e poeira invadem agora o interior da boléia, deixando o clima ainda mais pesado. Escarrando pela segunda vez, o caminhoneiro fecha o vidro da janela, impedindo que o restante da poeira continue entrando.

    — O que é que ta havendo? — ele pergunta ao terminar de fechar a janela.

    — Eu não sei, tenho andado um pouco estranha.

    Ele desliga o motor e acende uma outra luz, um pouco mais forte para poder olhar o rosto da menina. Ela percebe e o cobre com as mãos.

    — Como assim estranha? — A voz do caminhoneiro soa um pouco abafada.

    — Eu não sei, tenho enjoado muito ultimamente — diz a menina cujo as mãos já não são mais capazes de esconder as lágrimas.

    — Não vai me dizer que... — segurando-a pelo pulso, ele retira uma das mãos da menina de sobre o rosto e continua — não vai me dizer que você deixou essa merda acontecer contigo.

    Desta vez ele se aproxima uma pouco mais da menina e ela percebe um cheiro forte de bebida — Talvez rum? Talvez vodka? Não. Em se tratando de quem era, talvez cachaça, talvez álcool ou talvez até mesmo algum tipo de combustível destilado em um desses tanques sujos de beira de estrada.

    — Eu... eu não sei. Não é nada certo ainda — ela tenta inutilmente soltar sua mão.

Ele agora agarra o seu pulso com uma força brutal. O barulho da carne sendo espremida por entre os seus dedos, parece estar lhe proporcionando algum tipo de prazer momentâneo que até então não havia sentido antes.

    — E agora você acha que vai ficar me chantageando com essa história de... — Ele fecha sua outra mão como se estivesse se preparando para uma dessas lutas de boxe que costumam passar nas madrugadas de fim de semana.

    — Não! — Ela grita apavorada. Sua mão escorrega pelos dedos do grande homem e com muito custo ela a protege junto ao peito, cobrindo-a com a outra mão e afastando-se de perto dele rapidamente, espremendo-se contra o vidro da porta do carona.

    O choro some. Ficam apenas a raiva e o medo que se misturam aos poucos com as palavras trêmulas que escapam frouxas por seus lábios pálidos:

    — Eu só não sei o que fazer. Queria a tua ajuda... — E como uma metralhadora verbal, ela despeja sobre aquela gigantesca estátua do medo, tudo aquilo que antes talvez estivesse preso pelo receio e que de certa forma a dor e a raiva, fizeram com que o gatilho fosse acionado — Eu já não sei mais o que dizer pro meu pai. Volta e meia ele me pega vomitando pelos cantos da casa. Eu digo que estou passando mal do fígado ou que comi alguma coisa que me fez mal, mas você sabe como ele é, sempre desconfiando de tudo, sempre desconfiando de mim. E ultimamente, ele tem estado muito estranho. Vive dizendo que esta ouvindo a voz da mamãe pela casa. Eu mesma já peguei ele chamando o nome dela no banheiro. Ele chegou a ponto de me dizer que ela estava chorando por minha causa, e que eu ainda ia dar ainda muita tristeza pra ela. — Ela limpa as lágrimas que voltaram a escorrer lentamente pelo seu rosto. — E agora isso, estou vomitando e... — O choro desaba.

    Sentado de uma maneira incômoda, o senhor estátua parecia ter agora o dobro do tamanho de antes. Seus olhos, vermelhos como brasa quente, alimentava o medo e expandia a dor de se estar ali, de frente para um dos mais bem sucedidos representantes da Insanidade S.A. 

    Mesmo sem forças, ela continua — Sabe de uma coisa? Eu ouvi ontem à noite... Ouvi um choro de neném e depois um grito de mulher. Mas não era da mamãe, eu sei que não era. Ou pelo menos não pareceu com um dos gritos que ela dava durante a noite. — Ela chora ainda mais e não consegue ir adiante. 

    Um silêncio toma conta da boléia. Apenas o choro intercalado da menina, fazia par com a respiração crescente do caminhoneiro.

    Enfim a besta desperta — Já chega! — Grita o homem levando as mãos até o rosto e as largando no ar em seguida. — Chega... cala a porra da boca. Eu não sei o que fazer e nem quero esquentar a porra da cabeça com isso. Eu tenho coisa mais importante pra me preocupar ta entendendo? Além do mais, tu acha que eu vou cair nessa? Tu acha mesmo que se você estiver grávida, eu vou acreditar que essa merda aí dentro é minha? — Ele a segura pelo pulso novamente. Mas desta vez, sua força é quase sobrenatural. A carne, antes amassada pelos dedos ásperos do senhor estátua, serve agora, como uma manta fina para abafar o estalo dos ossos que se quebram a cada empurrão contra a porta. — Tu deve sair com todo mundo sua piranha. Quem me garante que eu sou o pai disso ai? Quem me garante? — Seu hálito agora era indecifrável. O ar que circulava dentro da boléia era insuportável. Aquela, era A LATRINA DA ESTRADA.

    Ele pega a chave. Ela chora de dor.

    Ele liga o carro. Ela grita de dor.

    Ele afrouxa a mão. Ela lhe cospe a cara.

    Ele desliga o motor, e enlouquece.

    O cabelo ruivo e liso tornou-se um emaranhado vermelho entre os dedos do Homem-besta. A cabeça leve e frouxa da menina, fora atirada com uma brutalidade voraz de encontro o vidro dianteiro. Seus olhos ameaçaram saltar da órbita com a primeira pancada, mas resistiram bravamente. Um filete de sangue escorreu lento pelo ouvido direito, deixando respingos espalhados por toda a extremidade do vidro. Um soco forte rompeu a pele alva e delicada da menina, fazendo com que o sangue escorresse um pouco mais rápido desta vez. Suas mãos frágeis tentavam inutilmente deslocar as garras da besta para o lado, fazendo com que ela lhe soltasse os cabelos. O primeiro arremesso de cabeça, tinha sido um sucesso. Nada mal para quem havia acabado de começar a praticar este tipo de modalidade. Porém, no segundo, algo inesperado aconteceu. A força com qual o Homem-besta segurava os cabelos da menina era tanta, que eles não resistiram e romperam-se sobre o couro cabeludo. Seu corpo frágil deslocou-se pela boléia velozmente até a porta, onde bateu com a cabeça sobre a maçaneta. Empurrando seu braço para traz, rasgando o cotovelo na fechadura do porta-luvas, abrindo-o e fazendo com que um revolver calibre 38 caísse sobre o tapete emborrachado.

    Ela pega a arma rapidamente e sem muita segurança, a aponta na direção do caminhoneiro. Ele se joga contra a menina, mas não consegue tomar a arma de suas mãos. Ela dispara o revolver. A bala acerta a porta e ricocheteia dentro da boléia quebrando a lâmpada.

    De repente, um outro disparo.

    Um grito.

    Latidos de cachorro.

    Ao longe, uma mulher grita e uma criança chora. 

Tópico: "A Casa da Estrada", por Tunico Sena

parabens

Massa mais faltou um pouco de suspence

Parabens

Muito bom, até me emocionou.

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