“Olhinhos Cintilantes”, por Paulo Valença
1
A parada dos ônibus.
Donias chega e com mais um sujeito magro, amulatado espera aquele que o conduzirá ao centro da cidade, onde pegará outro coletivo que o levará ás proximidades de sua casa. Cansado. Os braços doloridos. As pernas também. Os “serões” estão lhe acabando... Contudo, necessita do emprego e tem sim que os fazer, seguindo a norma da empresa, para se “garantir”...
A noite está adiantada. Pela avenida defronte, um carro ou moto transita.
Consulta o relógio no pulso. Onze horas.
- Puta merda!
Exclama, sem se conter, indignado com a demora do transporte. O homem entende-o sorri:
- É “bronca”, meu camarada.
Donias então lhe fitando o rosto comprido, de traços grosseiros, envelhecido:
- E a gente que fique aqui, nesse deserto...
- Pois é.
Silenciam. De uma casa no morro além das residências atrás deles, vem à música “brega”. O vento circula frio, contudo, agradável, envolvendo-os.
Uma noite, por essa mesma hora, será um novo Donias, estará “noutra”...
O parceiro de espera o tira das reflexões:
- Você trabalha na fábrica ali?
- Trabalho. Sou operador de máquina.
- Sei. Conheço o serviço.
O ônibus aí desponta na esquina e se aproxima ligeiro.
- O meu é esse, cara. Até!
Diz o homem e, Donias sorrindo:
- Vai com Deus!
A condução estaciona ao aceno da mão aberta do outro, que entra apressado, e o coletivo arranca em velocidade.
Donias segue-o com os olhos analíticos se afastar, diminuindo, desaparecer...
2
O automóvel cinza importado se aproxima. Conduzindo-o vai a jovem esguia, branca, de cabelos longos, pretos, blusa bege e calças azuis e, vendo o homem sozinho no abrigo dos coletivos, aguardando aquele que o transportará, então sorri, sentindo-se de repente otimista. A “caçada” terminou.
Reduz a marcha avizinhando-se, e estaciona.
Donias se volta, perplexo.
- O senhor quer uma “carona” até a cidade? Nessa hora assim sem mais ninguém... É muito perigoso!
O rosto de traços corretos, alvo (muito alvo), os olhos negros, os cabelos da mesma cor, longos, finos, estira dos, o sorriso de covinhas... Como não aceitar esse convite, que bem pode ser uma “cantada” disfarçada, para uma “transa” amorosa?
- Aceito.
A porta se abre e ele adentra. Sorrindo, com a atenção voltada ao vidro á frente, a jovem acelera e o veículo ganha macio a avenida com um ou outro carro e pedestre nas calçadas laterais.
Donias continua sorrindo, sem acreditar no que está vivendo. Sim, tudo isso lhe parece um sonho...
3
O motel. As doses. O leito. Os corpos despidos. As carícias ousadas. De olhos fechados ele se entrega, vencido pelo prazer da boca quente que sobe e lhe beija as faces e, de repente... Sente a mordida no lado esquerdo do pescoço.
Sentindo a dorzinha fina, então abrindo os olhos:
- Porra! Você me mordeu “gata”.
Nos lábios finos entreabertos o sangue se mostra nos caninos salientes, pontiagudos. A sonolência... Nova mordida, e ele adormece.
4
Desperta. Meio-tonto. E num reflexo, procura com os olhos aflitos a jovem no leito. Não está. Encontrar-se-á no banheiro? Ainda zonzo ergue-se e movendo-se devagar cruza o quarto e empurra a porta do banheiro. Vazio.
- Mas...
Compreende. Ela o abandonou, sem se despedir, dizer nada. Misteriosamente. Então prático, toma o banho, veste-se e deixa o quarto. Talvez o porteiro lhe esclareça a ausência da mulher alva, bonita, que o acompanhou até o quarto.
Entra no elevador e desce.
É cada uma que nos acontece. Está mesmo vivendo tudo isso?
5
Agora decorrido um mês, Donias se indaga: Como pode alguém viver o que viveu? A “carona”, a “transa” no motel luxuoso, a parceira fogosa, “avançada”, a mordida no pescoço, seu desfalecimento. Ao despertar, se ver sozinho. O porteiro sem saber explicar o desaparecimento da bonita jovem branca, esguia...
Defronte ao espelho sobre a pia, ensaboa o rosto, para se barbear. Pensativo.
- É cada “uma” que nos acontece!
Sorri e se percebe pálido, diferente e vê... Os caninos crescidos, pontiagudos, semelhantes...
- Semelhantes!
Repete, dando voz ao que entende ao que lhe esclarece tudo. Sim, agora é outro, faz parte dos buscam na noite às vítimas que lhes ofereça a energia através do sangue, para que continuem vivendo.
Cerra os lábios, escondendo-se. E, devagarzinho retorna a se barbear, resignado, reentregado à nova realidade.
De repente se volta, procurando, como se soubesse estar sendo observado, estudado. Então enxerga pousado na marquise do prédio defronte, o enorme morcego fitando-o com os olhinhos cintilantes, terrivelmente cintilantes.