"Ganância", por José Carlos Santana

    Nem mesmo minha infância, memória, nem mesmo minha infância você perdoa?

    Augusto olhava impaciente os anéis de fumaça que subiam em direção do teto. Aquilo era uma prática que costumava fazer quando estava nervoso. E aquele era um momento de nervosismo. De pura adrenalina, como diziam aqueles caras que praticavam esportes radicais. Alguns círculos de fumaça se desfaziam antes de chegar ao teto, mas outros continuavam firmes até tocarem no reboco pintado de branco. Era uma forma de tentar colocar os nervos no lugar. Uma forma de tentar manter a calma. E calma era algo que lhe faltava naquele instante.

    Primeiro foi sua esposa, que uma semana atrás o havia deixado. Ele foi trabalhar e quando voltou encontrou apenas um bilhete preso na geladeira com as últimas palavras de Marta : “Tentei suportar, mas não consegui.” Aquela cadela finalmente cumpriu as ameaças que havia feito durante os quatro anos de casamento. Mas será que ela nunca percebeu que ele era um homem de negócios ? Não podia estar 24 horas ao seu lado ? Tinha responsabilidades ? Será que era tão burra assim ? Mas tudo bem. Afinal, não tinham filhos e aquilo facilitava as coisas. Pelo menos não precisava se preocupar com a pensão alimentícia .

    E naquela manhã havia surgido a segunda bomba. Fora mandado embora da empresa em que estava há nove anos. Havia ganho o bilhete azul. Seu chefe o chamou na sala e disse que precisava de “sangue novo” na empresa. Bernardo Alves iria ficar no seu lugar. Um cara que ainda usava fraudas quando Augusto já estava cansado de trabalhar doze horas diárias no mercado de trabalho. Cretino. Desde que havia entrado para a empresa, há dois meses atrás, Bernardo estava de olho no posto de chefia que Augusto assumia. Pelo menos era assim que Augusto via as coisas. Trapaça, suja e simples. Só porque Bernardo havia feito mais cursos de informática e podia “montar” programas e formas de venda que levariam a empresa a ocupar um melhor lugar no mercado da computação. Mas aquele almofadinha iria se arrepender de ter se metido com ele.

    Augusto tinha 53 anos de idade e uma grande bagagem nas costas. Não iria ser difícil de encontrar outro emprego. Ainda mais com os bons contatos que sempre teve no mercado de trabalho.

    O cigarro chegou ao filtro e Augusto já podia sentir o calor chegar aos seus dedos. Virou de lado, amassou a bituca no cinzeiro e imediatamente pegou outro Marlboro e o acendeu com seu isqueiro prateado zippo importado dos EUA. Recomeçando assim seu ritual de círculos de fumaça.

    Na manhã seguinte Augusto fez uma peregrinação às empresas que tivera contato durante seus anos de trabalho. Na esperança de que seus colegas lhe arrumassem alguma coisa. Na precisava ser de chefia, mas sabia que mais cedo ou mais tarde esse era o posto que iria conquistar. Mas ao chegar o final do dia a única coisa que havia conseguido era um “Se aparecer alguma coisa lhe avisamos”. Segundo seus colegas, Augusto estava numa idade crítica para conseguir emprego e sua capacidade estava superada. As empresas estavam mais interessadas em dar vagas para jovens que podiam contribuir mais com os negócios.

    “Um monte de merda” era o que Augusto achava. Será que eles estavam com a mesma mentalidade de sua esposa ? Augusto não estava interessado em arrumar um lugar onde poderia se aposentar e ficar coçando o saco durante todo o dia sentado no sofá assistindo ao futebol ou aos filmes de “Sessão da Tarde” enquanto esvaziava uma lata de cerveja. Ele queria trabalhar. Era o trabalho que o motivava na vida. E aqueles imbecis não estavam querendo aproveitar a oportunidade de tê-lo em seu quadro de funcionários.

    Esses também iriam se arrepender quando Augusto desce a volta por cima. Ah, iriam mesmo. Augusto iria fazer questão de passar de cabeça erguida por eles e telefonar dizendo poucas e boas sobre a oportunidade perdida. Bando de mal agradecidos, isso é o que eram. Gentinha sem visão de trabalho.

    Duas semanas havia passado e Augusto não havia conseguido nada além de promessas. Muitas delas com ar de “Desculpe, chapa. Mas você já era. Seu tempo acabou. Dê lugar ao ‘sangue novo’.”

    O consumo de cigarros havia aumentado de dois para quatro maços por dia. E seu quarto mais parecia uma sauna de tanta fumaça. Muitas vezes nem conseguia encontrar seu isqueiro no meio de tanta fumaça.

    Apesar de ser um homem robusto, só na última semana havia perdido cinco dos seus noventa e dois quilos. As bolsas em baixo dos olhos eram visíveis. E isso acabava atrapalhando ainda mais as coisas. Pois lhe dava um ar de doente. “Você está bem, Augusto”, era o que diziam ao vê-lo. Claro que não estava bem. Precisava de um emprego para ficar bem, porra. Mas ninguém queria lhe arrumar um. O mundo estava cheio de pessoas falsas e sem coração. Onde estavam aqueles que ele havia ajudado no correr dos anos ? Onde estava a ajuda das pessoas que um dia ele ajudou ? Se bem que não foram muitas. Pois ele tinha que ganhar espaço no mercado de trabalho. Tinha que suar a camisa para a empresa. E isso muitas vezes significava ter que entrar em brigas feias por contratos novos. Mas todos tinham que ver que ele estava fazendo o que era certo. Tinha que lutar contra tudo e contra todos, porra. Não era a lei da sobrevivência ? A selva de pedra não funcionava assim ? Então para o inferno com todos aqueles ingratos. Mas não se daria por vencido. Iria conseguir um bom emprego. Sua avó costuma dizer: “As coisa ruins acontecem sempre em três etapas. Sempre em três.” Claro que Augusto nunca acreditou naquela papagaiada toda.     A velha estava senil. Todo mundo podia ver.

    Mas os dias passaram e Augusto não conseguiu progresso algum nas suas buscas. Tinha que fazer novos furos no cinto para segurar as calças. Já eram dez quilos a menos para as penas suportarem. Sua aparência estava horrível. Sua pele adquirira uma tonalidade amarela opaca. Como aquele que infernos presos ao leito de um hospital apresentam. Não se preocupava em se alimentar. Seu alimento eram os cigarros. Que já estava na casa dos seis maços e meio por dia. Não conseguia mais dormir direito. Apenas deitava na cama e iniciava seu ritual de lançar anéis de fumaça para o teto. Coisa que levava horas fazendo. Varava a madrugada naquele jogo solitário antes de dar pequenas cochiladas.

    A única coisa que fazia, além de fumar, era tomar café. Pois sua garganta estava cada vez mais seca por conta da nicotina. E pela manhã um acesso de tosse tomava conta de seu corpo. Eram acessos tão fortes que muitas vezes ele tinha que deitar, pois as dores no estômago não o deixavam ficar em pé. Ele sentia uma gosma que lhe chegava até a boca, mas não conseguia cuspir. Era algo pastoso, como pasta de amendoim que descia e subia. Lembrava mais uma vaca ruminando o capim que comera durante o dia.

    Aquela manhã não fora diferente das outras. Depois de um grande acesso de tosse Augusto foi preparar um café para iniciar mais um dia de buscas. Seu ânimo havia caído muito. Já não tinha endereços para ir. Havia visitado todas as empresas de vendas de artigos de computação que conhecia.

    Já não se importava em encontrar algum outro emprego que não fosse na sua área. Mas as filas eram sempre enormes e a concorrência era assustadora. Nunca imaginava que um dia iria passar por situação semelhante. Apesar do dinheiro que ganhou por seus serviços prestados nos últimos nove anos, Augusto queria um emprego. Imaginar ter que ficar sem fazer nada o deixava trêmulo e angustiado.

    Havia um tempo em que a experiência era uma coisa cobiçada. Mas parecia que aqueles tempos estavam há anos luz da realidade atual. Onde muita coisa fora deixada para trás. As pessoas se sujeitavam a condições vergonhosas. A tratamentos de submissão. Porque se a pessoa se recusasse a fazer o serviço, com certeza iria encontrar mais de oitenta pessoas querendo o mesmo emprego e ganhando a metade do salário.

    Augusto sentia a cabeça rodar e a vista arder. Tomou um gole do café amargo que preparara e colocou um cigarro na boca. Tateou os bolso para pegar o isqueiro zippo, mas não o encontrou. “Merda. Deve estar no quarto” pensou Augusto. Mas ao vasculhar o quarto não o encontrou. Olhou em todos os lugares e não o achou. “Devo ter perdido pelo caminho”, pensou ele. Mas tinha a sensação de que o havia usado na noite anterior.

    Já que estava no quarto se arrumou para mais uma nova tentativa. Iria até a banca da esquina e compraria aqueles cadernos de emprego onde poderia circular as melhores propostas e piores também. No momento só precisa de alguma coisa para fazer. Com o tempo as coisas iriam se ajeitar. Tinha certeza disso. Pegou uma caixa de fósforos no armário e ascendeu mais um companheiro. Deu uma longa tragada e contemplou o cigarro enquanto soltava a fumaça, que havia feito um pequeno tour em seus pulmões. “É , companheiro. Por enquanto somos só nós dois.”

    Depois de comprar o Caderno de Empregos, Augusto se dirigiu a estação de metrô mais próxima. Tentaria um endereço que achara nos classificados.

    Não eram 07:30 hs e a plataforma já estava lotada. Como, afinal de contas estava todos os dias naquele horário. Augusto tentava se manter numa posição agradável para tentar embarcar. O primeiro metrô parou e a multidão agiu como gado sendo levado para o matadouro. Empurrões daqui e dali, enquanto a massa humana tentava se equilibrar.

    Augusto não conseguiu embarcar e ficou na frente para o próximo metrô. Muitas pessoas se acotovelavam atrás dele. Mas no próximo ele teria que ir, pois não queria chegar atrasado no endereço. Onde certamente já existia um fila enorme, dobrando a esquina.

    Logo os faróis amarelos apareceram na curva da estação e Augusto deu um passo à frente da linha amarela de segurança. O barulho do metrô se aproximando se tornava mais audível. E com isso a multidão também se aproximava mais da plataforma. Num total hipnotismo. Corpos se juntando como se fossem se fundir. O vagão se aproximava com velocidade e seus faróis eram como olhos flamejantes. Augusto teve tempo apenas de ouvir alguém gritar “Ei, não empurra não”. Tentou olhar para trás, mas a massa humana se projetou para frente, lançando seus vários corpos contra Augusto, que não conseguiu manter o equilíbrio de seu corpo na plataforma e mergulhou para os trilhos no exato momento em que o vagão passava por ali. Um grito de terror foi ouvido e depois o barulho de ossos sendo esmagados. Uma senhora levou as mãos à boca para segurar o grito, enquanto outra moça colocava o desjejum em cima do sapatos de um jovem executivo com sua pasta 007. O cheiro de freios subiu dos trilhos e logo vários agentes do metrô estavam correndo em direção ao local onde o vagão havia parado.

    Pouco coisa sobrou de Augusto, que teve seu corpo dilacerado e arrastado por quase dez metros. Uma morte praticamente instantânea. Algumas pessoas desmaiaram, outras passaram mal, e algumas simplesmente balançaram as cabeças e se dirigiram para as saídas, pois sabiam que as operações ficariam paradas e tinham que chegar no horário certo para manterem seus empregos. Pois os patrões não estavam muito interessados em saber que o atraso se devia a uma morte horrenda no metrô. Aquele era um mundo louco, mas todos tinham que cumprir seus papéis na grande peça da vida.

    No interior de um velho carvalho uma criatura andava entre prateleiras cheias de objetos. Objetos variados e de todos os tipos. Pertencentes a pessoas de todas as idades, credos e classes sociais. A criatura usava um avental sujo de médico. Não tinha cabelo e seu sorriso mostrava uma fileira de dentes pontiagudos, como os dos canibais. Olhos frios e matreiros. Acariciava com grande alegria um objeto novo que tinha nas mãos pequenas e que agora era parte de sua enorme coleção. Com todo carinho ele colocou o pequeno isqueiro zippo prateado no lugar em que estava reservado.

Tópico: "Ganância", por José Carlos Santana

...

Interessante... Bem, admito que o conto expressa o hoje de todos nós. A importância do "eu" para todos. Para a maioria... O seu ''eu'' está em primeiríssimo lugar... Mas estamos em último...Olhem pra si... E vejam o que são... O que por mais incrível e horrendo é o que nos transformamos... O ser, a vida são belos... Mas no final somos nossas marionetes... É simples perceber.... É apenas observar... Obrigada.

Gostei

Gostei do conto - curto, simples, e objetivo. A narrativa, contudo, achei meio simplória - o nome do protagonista repetido várias vezes dá um certo cansaço no texto - principalmente quando se está lendo numa página de internet. O final está simplesmente surpreendente - adorei o modo como foi passada a ambientação de mundo moderno, no qual ninguém liga para ninguém. E o detalhe do isqueiro deu um toque bem especial, típico de quadrinhos da linha "underground" da Vertigo (estilo Sandman, Monstro do Pântano, respectivamente de Neil Gaiman e Allan More).

Novo comentário