"Gênero", por D. C. Amaral

                    Segunda-feira, 14 de julho de 2003.

 

“Que estranho”! Indagou Dona Luiza ao pai de Bruno que perguntou-lhe o que era estranho.

 

-- Estranho é o Bruno não aparecer para almoçar hoje. Geralmente ele vem toda segunda-feira.

-- Ele deve estar cheio de serviço, à noite eu ligo pra ele.

 

        Quinta-feira, 10 de julho de 2003.

 

Sol à pique, muitas nuvens ralas tentando inutilmente esconder o astro dourado, temperatura amena de inverno, sol de inverno.

Bruno trabalha com pouco interesse, pára, olha para a tela de seu computador e vislumbra seus arquivos de fotos que mostravam uma linda vegetação verde com bromélias que iam do amarelo ao vermelho. Trabalhava com informática e banco de dados de uma grande empresa no interior de São Paulo. Bem apessoado e de corpo atlético, adorava aventuras, era praticante de rapel, tiroleza, montanhismo e todo esporte que pudesse ligar a natureza da flora à natureza de seus instintos.

-- Alou?

-- E aí gato, nossa viagem está de pé?

-- Você deve estar brincando, claro que está! Não consigo pensar em outra coisa.

-- Ah bom! Já arrumei a minha bagagem, nossa barraca e estou levando aquele gel que você gosta, gatão.

-- Você é sacana mesmo heim Bruninha!

-- Eu? Sacana? Você que praticamente exigiu que eu fosse na sexshop comprar mais e a sacana sou eu? Você é muito cara de pau mesmo, Sr. Bruno “cara de pau” de Oliveira. Mas tudo bem, eu vou deixar aqui em casa e não levo!

-- NÃÃÃÃOOOO! É brincadeira, leva que eu adoro, fico até excitado só de imaginar.

-- Tá, agora deixa eu estudar, só liguei pra confirmar. Te espero amanhã em casa para combinarmos os detalhes.

-- Tá bom gatinha, te ligo à noite. Beijos.

-- Beijos!

 

Sexta-feira, 11 de julho de 2003

 

Bruna olha para céu da janela de seu apartamento e vislumbra um dia perfeito, raios solares revelam a poeira quase que invisível sobrevoando sua cama ainda desarrumada.

São 7h32, o relógio-despertador tocou às 7h, mas ela dormiu mais meia hora como era de praxe, dia após dia, o mesmo ritual, os mesmos trinta minutos. Sentou-se à mesa com sua mãe para o dejejum matinal, saboreou uma xícara  de café puro com muito açúcar e mordiscou uma fatia de bolo de fubá com manteiga. A feição de prazer estava impregnada em seu ser, não via a hora de sair do trabalho no final da tarde para ir viajar com Bruno, seu “quase” namorado.

   Era cômico o fato de estarem namorando, pois coincidência ou não, seus primeiros nomes eram quase homônimos, se não fosse o gênero que os diferenciavam. Na USP, onde Bruna jazia de sono em sua carteira rabiscada, assistia a uma aula de álgebra “sonífera” chegando até a sonhar com a viagem para Ibitipoca no interior de Minas Gerais. Ela ainda não conhecia o lugar, mas não via a hora de pegar a estrada e conhecer, pois Bruno já havia ido várias vezes e adorava o lugar. Ele lhe mandou várias fotos das cochoeiras e do parque  por e-mail que a fascinou fazendo arrepender-se de não ter ido antes.

 

                                              Segunda-feira, 14 de julho de 2003.

 

-- Ele não atende mesmo, já deixei quatro recados na secretária eletrônica e duas na caixa postal do celular.

-- Tenta de novo, eu sabia que alguma coisa estava errada, ele nunca deixa de almoçar conosco na segunda. Meu Deus, aonde esse menino se meteu, já são onze da noite.

-- Ele me disse que iria viajar, mas não disse pra onde e nem com quem.

-- Desde que ele foi morar em São José é assim, ele nunca avisa, sempre fala pra gente na segunda o que ele fez no fim de semana e é sempre montanha, rapel, escalada, essas coisas que eu morro de medo. E se aconteceu alguma coisa com ele?

-- Luiza, vira essa boca pra lá! Não aconteceu nada ao nosso filho, ele sempre se virou sozinho, deve estar de namorada nova ou algo assim. Vamos dormir que amanhã eu tenho certeza que ele vai ligar.

 

Bruno já estava morto! Seu corpo encontrava-se com o abdômen esverdeado caracterizando avançado estado de decomposição.

 

                                            Sexta-feira, 11 de julho de 2003

 

Na Av. Paulista, uma moça de longos cabelos loiros e cacheados compra um lindo par de brincos feitos de maneira artesanal por um remanescente ripe alojado a uma esteira simples debaixo do Masp. O sorriso metálico de Bruna refletido no espelho emoldurado em massa epoxi traduz sua satisfação ao ver o brinco azul e vermelho no formato de um apanhador de sonhos em sua orelha. Ela praticamente comprou este brinco por já ter visto Bruno lendo um livro que levava este mesmo nome de um autor que ele adorava, mas que ela apenas tinha ouvido falar como mestre do terror e definitivamente não era o seu gênero. Era uma moça romântica, gostava de estórias de amor, seus olhos brilhavam quando assistia a um bom filme com esse tema.

Concomitante, Bruno fazia sua mala, saíra mais cedo da empresa e avisara que não viria na segunda, pois pretendia retornar da viagem neste dia em virtude do trânsito ser ameno nas estradas e odiava estressar-se ao volante. Sairia de Ibitipoca na segunda de manhã e ainda almoçaria com seus pais em São Paulo pois iria para lá de qualquer jeito para levar Bruna até sua casa. Tinha tudo planejado e acertado, seria uma viagem de sonhos, dormir com aquela garota maravilhosa era quase que inacreditável, já haviam transado várias vezes, mas as cópulas nunca eram iguais, se amavam a cada dia mais e o ato em si ficava cada vez mais “rosa” como Bruna dizia. Estavam muito apaixonados numa fase rica do relacionamento.

 

Dezenove horas, o pálio azul passa debaixo da ponte da Casa Verde na marginal Tietê e segue sentido marginal Pinheiros. Bruno pensa em passar rapidamente na casa de seus pais para lhes dar um beijo, mas iria atrasar sua viagem, pois eram quase seis horas de estrada de São Paulo a Ibitipoca.

 

                                          Domingo, 13 de julho de 2003

 

A escuridão do interior da gruta, somada a avançada hora da noite cria uma atmosfera sombria para Bruna que exausta, respira com dificuldade sob o ataque de sua asma crônica. No limite de sua sanidade física e mental, ela sucumbe ao sono escorada em uma pedra gelada e coberta de limo. Bruno desfigurado e com um olhar cadavérico se aproxima como um morto-vivo que escapara de um filme “B” de terror, a pobre menina encurralada entre as pedras úmidas tenta, mas não consegue gritar. Sua garganta está cerrada pela asma, gotas gélidas de suor escorrem em sua face e uma náusea seguida de enjôo revira seu estômago quando abre os olhos inchados de tanto chorar e percebe que estava sonhando, mas o pesadelo não terminara, ainda estava com a respiração ofegante e pausada como a de um canino, ainda sentia o cheiro de mato naquele lugar amaldiçoado por ela. Não sentia suas pernas e nádegas, tentou movê-las e se arrependeu quando seus nervos repuxaram os músculos; um comichão fugaz começando no calcanhar subiu até a cintura provocando uma dor terrível, mas também um contento, pois voltara a sentir suas pernas.

Uma fina e ruidosa garoa criava uma batucada rítmica na vegetação no exterior da gruta.  A temperatura caía aos oito graus fora da gruta e indicava que iria cair mais, pois ainda não passara da meia-noite e a madrugada tendia a ser mais gelada pela umidade do ar ser elevada nesta estação. Incrível era que estava inacreditavelmente quente dentro da gruta. O desespero passa, mas a angústia permanece no semblante da garota.

 

                                        Sexta-feira, 11 de julho de 2003

 

Na rodovia Fernão Dias, um casal entra na lanchonete do posto de combustível exalando uma felicidade que chega a causar inveja à garçonete com olhar cansado. O casal chega ao balcão em busca de atendimento quando visualizam a gorda atendente com cara de poucos amigos vindo em encontro.

-- Tem chocolate quente? Pergunta o rapaz.

-- Tem! Quer um? Sua namoradinha também?

 

Bruno sente a ironia na voz daquela senhora, mas a ignora por completo. Seu êxtase em estar indo a um lugar maravilhoso junto da garota mais linda do mundo aos seus olhos lhe completa.

 

-- Quer amor?

 

A garota vestindo uma parka enorme e aconchegante acena com a cabeça de forma positiva e abraçando-o de forma calorosa e apaixonada pisca duas vezes. A garçonete faz cara de nojo e vira de costas para eles em busca dos pedidos e eles riem baixinho se apertando ainda mais. Saboreiam  o chocolate quente até a última gota que, ao contrário que esperavam, estava delicioso. Seguem viagem novamente.

 

                                         Terça-feira, 15 de julho de 2003

 

O Sr. Oliveira leva sua mão aos ralos cabelos semi grisalhos e desliga o telefone com pouco entusiasmo.

 

-- E então Francisco, o que aconteceu, fala homem!

-- Ele não foi trabalhar hoje, disse que ia viajar e só voltava à empresa na terça.

-- Mas terça é hoje! Cadê o nosso filho, Francisco, cadê?

-- Eu falei com um amigo dele na empresa que me disse que ele foi para Ibitipoca em Minas e que viria aqui ontem para almoçar conosco, só isso.

 

Dona Luiza se desmantela a chorar enquanto abraça seu marido para se agüentar de pé.

 

-- Temos que tomar providências, acho que vou pra lá agora. Melhor, vou ligar pra polícia de lá e depois eu vou.

 

Sr. Francisco liga para a telefonista do auxílio à lista e pede os telefones dos hospitais, das delegacias e das estâncias ligadas ao turismo de Ibitipoca. Liga para todos, Ibitipoca não tem hospital, apenas um posto de saúde e o hospital mais próximo fica em Lima Duarte, cidade vizinha.

Ele liga para o hospital em Lima Duarte e não obtém nenhuma informação do seu filho; liga para posto policial em Ibitipoca e descobre que os policias e os funcionários do Parque nacional de Ibitipoca estão à procura de um casal que desapareceu no sábado. Sr. Francisco pergunta se eles têm informações mais precisas e o soldado que atendeu pediu para ele ligar depois de uma hora que iria verificar no registro do Parque onde estavam acampados.

 

                                          Domingo, 13 de julho de 2003

 

            Um filete d´água escorre por entre uma fenda de uma pedra enorme no teto da gruta e desaparece entre duas pedras na parede a mais ou menos dois metros de altura. Bruna desidratada, alcança com uma das mãos o filete d´água que escorre em seu braço até seu ombro. Ela sorve a água que escorre em seu braço para matar a sede e sua boca seca e esbranquiçada toma cor novamente e aquele líquido lhe da novas forças para continuar viva e lúcida. Sentiu até que poderia gritar, mas sentiu medo que a asma lhe fosse mais uma vez sua inimiga. Na noite anterior, quase se asfixiou e não queria sentir aquilo de novo, não sem ter certeza de que seu remédio estivesse a sua mão. Não havia iluminação alguma na gruta, nem ao menos um intrépido facho de luz lhe chegara, ao invés disso, o mais negro breu imperava e seus olhos já se acostumavam com à escuridão. Já conseguia identificar o vulto que antes não conseguia a uns dois metros de onde estava; era o corpo de Bruno, a pessoa que amava e que jazia naquele canto. Se sentia culpada e assistia, de mãos atadas, à marcha fúnebre da morte a lhe decompor a carne, pois a alma já o abandonara.

Como uma adaga, era sua culpa cravada em seu peito. Bruna começou a achar que deveria morrer também e, aos poucos, foi se entregando à escuridão. Logo já não enxergava nada, um mergulho no nada, no escuro.

 

                                         Sábado, 12 de julho de 2003

 

Um céu nublado é o teto de Ibitipoca naquele sábado cinza, mas o lugar é lindo e de vegetação farta com detalhes pitorescos do parque. Pegadas de lobos Guará rodeiam a barraca onde dormiram Bruno e Bruna. Após acordarem de um descanso de apenas duas horas e meia, eles arrumam o resto da bagagem (ficaram com preguiça de arrumar quando chegaram às cinco horas da manhã). Bruno levou a garota a um lugar bem próximo aonde eles acamparam que parecia com uma prainha. As pedras minúsculas imitavam areia como se fosse rocha ralada à margem de um rio de águas incomuns com tonalidade avermelhada (devido aos minerais providos da região). Bruna, maravilhada com aquela visão, nunca tinha visto algo tão inusitado!

 

-- Posso beber?

-- Melhor não, né gatinha! Temos água potável que eu comprei, bebe desta. Ele lhe entrega um cantil com água.

-- Bruno, é lindo, Porque a água é dessa cor?

-- É por causa do minério que existe aqui e você não viu nada ainda. Eu vou te levar a um lugar chamado de “janela do céu” que é show, e tem muito mais, você vai ver! Só que primeiro eu vou te levar na “gruta das Bromélias”, é o lugar que mais gosto daqui, me sinto livre lá.

 

Após tomarem o café da manhã na mesa improvisada com a tampa traseira do porta malas do carro, guardaram e fecharam tudo para irem à gruta das Bromélias que ficava relativamente perto de onde estavam. Eram os únicos ali no parque, pois era um final de semana comum e o tempo estava nublado. Não havia outros turistas ali, só havia o Sr. Nepucemo que trabalhava na portaria do parque.

 

-- Vamos levar máquina, água ou alguma coisa?

-- Só a máquina, gatinha, a gente vai lá e volta, é aqui pertinho.

-- Tá!

 

             Eles caminharam de mãos dadas por uns quinze minutos e chegaram à entrada da gruta que estava fechada por um portão de ferro com uma placa pintada de amarelo bem acabada de maneira profissional que dizia:

 

 “BEM VINDO A GRUTA DAS BROMÉLIAS, A VISITAÇÃO É SOMENTE PERMITIDA COM ACOMPANHAMENTO DE UM GUIA CREDENCIADO DO PARQUE. ATENCIOSAMENTE, A DIREÇÃO DO PARQUE NACIONAL DE IBITIPOCA”

 

 e logo abaixo desta, uma outra se fazia visível escrita a mão em uma tábua empenada com os dizeres:

 

“VISITASSÃO PROIBIDA, PIRIGO DE DELISAMENTO”  

 

-- Que merda! Exclama o rapaz com feição de frustração.

-- Vamos pular, o portão é baixinho.

-- Não! É perigoso, olha placa!

-- É perigoso mesmo, eu posso voltar pra São Paulo escrevendo “visitação”  com dois ésses ou falando “delisamento” , só se for. Eu não viajei a noite inteira pra dar de cara com um portãozinho assassino de português pra não conhecer um lugar que você diz que é maravilhoso e tal. Vamos lá vai, a gente entra, tira uma foto e sai, aí vamos onde você quiser. Diz que sim!

-- Você é terrível! Tá bom, mas eu vou primeiro pra ver se é seguro e volto pra te pegar. Tudo bem assim?

-- Tá, vai então, vai!

 

E Bruno com uma agilidade felina pula o portão e desaparece  aos olhos de Bruna que fica a aguardá-lo numa ansiedade quase incontrolável. Alguns segundos depois, aparece o rapaz com uma alegria nos olhos que faria bem a qualquer pessoa vislumbrá-los.

 

-- Tá pronta, gatinha?

-- Que foi, amor? Tá com os olhinhos brilhando, o que foi?

-- É muito bom estar aqui, tá tudo bem, vamos lá pra você ver.

 

E Bruno ajuda a moça que se mostra desenvolta em pular o portão. Os dois avançam em meio a escuridão da boca da gruta das Bromélias.

 

                                         Terça-feira, 15 de julho de 2003

 

José Bruno de Oliveira Brumato, este era o nome que estava registrado no livro de visitantes do Sr. Nepucemo na portaria do parque juntamente com o nome de Bruna Klein Hoffer.  Desespero, Sr. Francisco desliga o telefone assim que o soldado lhe diz os nomes. O fone mal toca o ganho e a campainha do telefone ecoa na casa fazendo com que Sr. Francisco leve-o automaticamente ao ouvido.

 

-- Deculpe, eu desliguei! Me diz aonde está meu filho!

-- Eu é que pergunto aonde está minha filha!

-- Quem está falando?

-- Aqui é Albert Klein, sou pai da Bruna. Ela está com seu filho!

-- Eu não conheço nenhuma Bruna, só conheço Bruno que é meu filho, me desculpe ter falado com você assim, é que eu estava falando com um policial de Ibitipoca.

-- Eu estou aqui, cheguei ontem à noite e estamos procurando os dois que estão desaparecidos desde sábado quando foram vistos pela última vez. O senhor ligou aqui há cerca de uma hora e o tenente responsável pelas buscas me passou este telefone. No registro deles havia o meu telefone para contato da Bruna e um telefone celular para contato com Bruno. Os policiais tentaram ligar para o celular, mas está desligado e ligaram pra mim me colocando a par da situação.

-- E qual é a situação? Eu vou praí agora mesmo, mas antes me diga, qual a situação?

-- Tudo leva a crer que eles se perderam, a barraca está intacta, todo equipamento está no carro. Isso significa que não pretendiam ir muito longe. Estamos vasculhando todas as trilhas, temos três companhias de corpo de bombeiros de três cidades vizinhas aqui. Contratei todos os guias desta cidade para procura-los e fui a uma rádio local hoje oferecer um prêmio em dinheiro para qualquer informação que nos ajude a encontrá-los. Tenho certeza que os acharemos rápido se Deus quiser.

-- Meu filho é muito esperto e já foi acampar nesta cidade do inferno várias vezes. Ele fez todo tipo de curso de esporte radical e sobrevivência. Ele nunca se perderia aí, pois conhece bem esta região, ao invés de me tranqüilizar, você só me deixou mais apreensivo.

-- Será que o senhor está me ouvindo? Parece que sou o único aqui que está tentando fazer algo! Se o seu filho não tivesse trazido minha filha, nada disso estaria acontecendo!

-- Me desculpa, estou nervoso e acho que estou descontando em você, agradeço por todo esforço que está fazendo. Estou saindo daqui agora e devo chegar breve aí para tentar ajudar em algo.

-- Tudo bem, também estou nervoso e acho que já gritei com toda a delegacia aqui. Qualquer novidade eu ligo neste telefone mesmo? O senhor não tem um celular?

-- Tenho sim, anote por favor!

 

                                          Sábado, 12 de julho de 2003

 

-- Uau! Que gruta linda e olha essa planta, como que uma planta nasce aqui com tão pouca luz?

-- É uma Bromélia, por isso o nome da gruta, não é de outro mundo? E você ainda não viu nada, eu conheço um caminho por ali que sai em outra gruta linda, mas eu acho melhor ficarmos só por aqui. Numa outra oportunidade eu te mostro.

-- Outra oportunidade? Vamos agora, eu to curiosa e maravilhada.

-- É perigoso, a passagem é estreita e eles não colocariam uma placa mesmo estando escrita errada de bobeira, não acha?

-- É pra espantar vândalos, olha só essas formações rochosas, nem Deus consegue move-las.

-- Deus faz qualquer coisa. Tudo bem, vamos lá então. Eu vou primeiro e volto pra te buscar.

 

Bruno se esgueirou pela fenda desaparecendo na escuridão. Passou cinco minutos e Bruna ansiosa andava de um lado para o outro a espera de um sinal de Bruno quando ouviu um barulho baixo vindo da estreita fenda. Ela gritou o nome de Bruno, mas não houve resposta, apenas um outro barulho se seguiu junto de um leve deslocamento de ar que gelou sua espinha. Sem raciocinar, ela adentrou na fenda engatinhando como um bebê e enxergava cada vez menos. Gritava o nome do companheiro, mas em vão. Já não enxergava nada, apenas tateava o caminho com medo do que poderia encontrar, até que percebeu que o ar estava ficando denso. Como sofria de asma, sentiu alguma dificuldade em respirar. Resolveu não gritar mais e continuou a engatinhar bem devagar. Levou sua mão ao bolso à procura do remédio de asma e, para seu desespero, não o encontrou. Foi apenas o começo do pânico que lhe invadia o peito no lugar de ar. Respirava com dificuldade agora quando ouviu um outro barulho, só que vindo de trás dela agora seguido também por uma brisa; outro deslocamento de ar. O medo a fazia enxergar coisas estranhas naquela escuridão, antes estava preocupada com Bruno, agora nem lembrava que ele existia, queria apenas sair dali. Com as mãos sentiu que a fenda se abria numa bifurcação irregular com se formasse dois caminhos, um para direita e um para esquerda. Tomou o rumo da direita quase que involuntário, era destra e talvez somado ao hábito de dirigir no trânsito tenha ajudado a decidir-se sem pensar. O caminho se fechou tornando-se muito estreito para ela passar; sentiu raiva de si por ter pego o caminho errado e voltou a rastejar para trás. Com a respiração ofegante parou para descansar. Já não tinha forças, seus braços bambearam e ela se entregou ao chão gelado daquela rocha.

 

                                          

 

                                         Domingo, 13 de julho de 2003

 

Um grunhido baixo se faz escutar. Bruna acorda suando e ofegante. Assustada, não consegue enxergar nada ao seu redor. Num ato impensado, se levanta colidindo a cabeça contra o teto baixo da passagem da gruta. Coloca a mão na cabeça onde ganhara um galo e ajoelha-se sem equilíbrio quase como um desmaio, mas sem perder os sentidos. Ela pára por alguns segundos dando atenção ao barulho baixo que escutava, pois fora o que a acordara. Ela grita o nome do namorado várias vezes que ecoa rapidamente para o fundo da passagem não obtendo retorno algum, somente o eco. Ela continua a engatinhar e o grunhido fica mais perto, parecia um rato, só que bem baixinho. O barulho pára e ela também. Segura a respiração e procura ouvir, mas nada lhe chega, nem mesmo uma brisa. Ela sente o ar quente e pesado e sua respiração não volta ao normal, continua ofegante, mas deseja continuar a engatinhar. O barulho reaparece, só que dessa vez na sua frente Seu coração dispara em um ritmo alucinante quase que ecoando o som de sua batida; seus ouvidos tapam como que por mudança de altitude numa serra praiana, sua traquéia se fecha dificultando ainda mais sua respiração já precária e seus olhos que estavam se acostumando com a escuridão turva lacrimejaram inchando suas pálpebras. Desespero, é isso que rebate criando um torpor em seu corpo. A situação era embriagante de medo, mas os segundos se passaram e sua pulsação voltava ao normal o ar já entrava com mais facilidade em seus pulmões. Limpou os olhos e tateou a sua frente encontrando a fonte do grunhido, era um morcego moribundo que jazia a sua frente. A princípio sentiu nojo, mas se comoveu em seguida e pegou-o nas mãos fechando suas asas com carinho e devolvendo-o ao chão. Se sentou ao lado do morcego e refletiu sobre a situação. Pensou o que poderia ter acontecido com Bruno e estremeceu ao pensar que algo de ruim poderia ter-lhe ocorrido. Ficou com mais medo de encontrá-lo morto e resolveu voltar por onde viera e procurar ajuda. Era só voltar pela passagem, pular o portãozinho da gruta e andar um pouco até o acampamento para pedir ajuda, pensou. Sentia vergonha em falar que invadira o local e já podia ouvir as pessoas falando em sua cara que era uma irresponsável, uma mimada que não seguia ordens e coisas do gênero. Praticamente se auto-avaliou, emergindo todos seus defeitos e começou uma discussão interna entre seu ego e sua razão.

 

-- Não achei que fosse acontecer isso!

-- Isso o quê garota, não aconteceu nada, mas é melhor sair daqui antes que aconteça.

-- As pessoas vão falar que sou uma muleca e que não devíamos ter entrado aqui.

-- Não viaja, diz que não queria, que só entrou por que o Bruno quis!

-- Você tá louca Bruna? Ele pode até estar machucado por minha causa.

-- Ele deve ter saído pelo outro lado pra te pregar um susto, deve estar tomando cerveja na barraca rindo de você agora.

-- Meu Deus, eu sou doente! Que absurdo eu to dizendo. Gostaria de saber rezar.

 

                                      Terça-feira, 15 de julho de 2003

 

Dia nublado, já passara das duas da tarde quando o Sr. Nepucemo, segurando o boné na cabeça, corre em direção ao helicóptero que estava prestes a decolar do heliponto improvisado no parque.

 

-- Sr. Klein! Sr Klein! Espera! Espera!

 

Gritava e acenava o Sr. Nepucemo em meio à folhagem que subia debaixo das hélices que diminuíam de rotação.

 

-- Alguma novidade, Seu Nepucemo?

-- Sim, Sr Klein! Sabe aquele guia mais velho que eu indiquei?

-- Sei sim, fala logo e não enrola!

-- Então, ele achou esta bolsa.

 

Era a pochete de Bruno, intacta e com o RG de Bruna junto a alguns cartões com dizeres apaixonados e assinados por ela alojados ao lado do remédio de asma.

 

-- Aonde ele achou? Vamos para lá agora!

-- Foi na gruta das Bromélias, ninguém havia procurado antes porque estava interditada.

-- Interditada? Como assim?

-- Por causa das chuvas, um geólogo de São Paulo veio aqui e disse que poderia desabar, aí eu fechei a gruta.

-- Fechou? Fechou como? Ah, deixa pra lá, vamos pra lá agora!

-- Sim senhor, vamos de carro que tem acesso.

 

Eles seguiram junto a dois policiais militares que estavam auxiliando na busca aérea. Com um jipe da polícia, chegaram à gruta.

 

-- Aqui que acharam?

-- Sim senhor, foi lá dentro.

-- Lá dentro? Meu Deus!

-- Eles devem ter pulado o portão.

-- Vamos lá então, eu quero ver o lugar exato onde acharam a pochete.

 

O velho porteiro tira do bolso um molho de chaves e abre o cadeado do portão; eles acessam o interior da gruta e um arrepio percorre a espinha de Albert.

 

                                       Segunda-feira, 14 de julho de 2003

 

-- Meu Deus, vou morrer, sei disso. Gostaria de beijar minha mãe e deitar no colo de meu pai. Meu pai, meu pai deve estar decepcionado comigo. Eu te amo, pai.

 

                                       Domingo, 13 de julho de 2003

 

Bruna reconhece o início da passagem por onde entrou e vislumbra uma atmosfera aterradora, era a pior coisa que lhe poderia acontecer. Ela lembrou das brisas que lhe acometeram no dia anterior, não eram brisas, eram deslocamentos de ar e agora entendia da onde veio um deles. O teto deslocou-se para baixo dando a impressão de que nunca existira uma passagem ali, havia farelos de pedra pelo chão que denunciavam o fato. Novamente o desespero arrebata seu peito tirando suas forças, mas desta vez ela lutou e decidiu não se entregar. Queria sobreviver e só restara o caminho inverso em direção ao morcego moribundo. Evitava pensar em Bruno, mas algo lhe dizia que ele teve o mesmo destino do pobre morcego.

Chegou mais uma vez na bifurcação e desta vez foi pela direita; o teto já estava mais alto, mas o ar ainda estava pesado e difícil de respirar. Seus joelhos estavam em carne viva, sangrando, mas ela não percebeu, continuou a engatinhar chegando ao morcego que morrera.

 

-- Ó judiação, pelo menos você vai descansar agora!

 

Ela pegou o morcego e beijou-lhe a testa com um carinho materno e insano e o repousou dentro de uma fenda que havia na parede. Continuou a engatinhar e até sorriu satisfeita quando lembrou do morcego inerte, morto. Com as palmas da mão sentiu mais farelos de pedra, mas continuou em frente até sentir muita dor nos seus joelhos quando pedras maiores lhe espetavam as feridas. Ela parou com as sobrancelhas cerradas e, com expressão de dor, se sentou com as costas apoiadas na parede e com os dedos entrelaçados abraçando as canelas em paralelo.

Ela abaixa a cabeça com o intuito de alongar a musculatura do pescoço que também a incomodava. Estava com fome e muita sede, transpirava demais, o calor aumentava e ficava cada vez mais difícil respirar. A posição era confortável e como fuga, adormeceu. Horas depois despertou com o sabor salgado de seu suor que escorria para sua boca; seus joelhos latejavam e ela mal conseguia movimentar as pernas; não sabia o que e fazer, mil pensamentos tumultuavam sua cabeça sem conclusão, apenas idéias dispersas e desconexas com a realidade, pensamentos com respeito à faculdade, futuro, e seus pais. Lembrou de quando foi a Londres com seu pai e viajou de trem para França abraçada a ele, protegida por ele como um filhote de pássaro entre as asas do grande pássaro, segura. Começou a chorar e soluçar; tentou conter as lágrimas com as mãos, mas de nada adiantou, chorou sem parar por quase quinze minutos. Eram lágrimas preciosas desperdiçadas, líquido precioso em sua atual situação. A desidratação lhe batia à porta, estava eminente quando parou de chorar. Decidiu continuar movendo-se para chegar a algum lugar, mas seus joelhos doíam muito; tentou ir de lado, apoiada em sua coxa direita e usando a perna esquerda como alavanca para a empurrar, mas estava exausta e não se locomoveu mais de três metros. Arrancou sua camiseta e tentou rasgá-la em duas partes, mas não tinha forças para isso; começou a raspar a costura lateral da camiseta numa quina de pedra que somado ao esforço, rompeu a costura principal. Aí foi fácil dividir a camiseta em dois pedaços de pano. Amarrou cada pedaço em um joelho e continuou a engatinhar com dor, mas conteve-se e prosseguiu. De olhos fechados viu o rosto de Bruno sorrindo, abriu-os rapidamente e sentiu um tênis com as mãos, mais uma vez aquela maldita sensação de torpor lhe invadiu, seu coração estava prestes a explodir, seu estômago revirou e ela achou que vomitaria se tivesse comido algo nas últimas vinte e quatro horas. À beira de um ataque cardíaco, ela se conteve, tentou respirar pausadamente como um cão e foi se acalmado voltando ao controle de seu corpo. Bruno estava com uma enorme pedra de aproximadamente duzentos quilos sobre o peito esmagado, seus olhos permaneciam abertos e inertes olhando para a parede. Bruna vai até ele e o beija incessantemente a face, acaricia-lhe os cabelos e segura sua mão rija com força.

 

-- Meu amor, nós vamos sair daqui, viu?

-- Já devem estar nos procurando, daqui a pouco aparece alguém.

 

                                       Terça-feira, 15 de julho de 2003

 

O corpo de bombeiros providos de alicates hidráulicos e toda parafernália tentavam acessar a entrada da passagem da gruta, perfuravam aqui, moviam ali e já se via com uma lanterna a estreita passagem que levava a outra câmara a trezentos metros dali. Albert aguardava, afoito do lado de fora da gruta, qualquer novidade sobre os esforços ilimitados daqueles homens vestidos de vermelho. Estava impaciente quando chegou Francisco desesperado. O pai de Bruna explica ao outro pai toda a situação que chora feito criança. Albert o abraça e desmorona a chorar também. Já era noite quando o Sargento Ramos sai da gruta cabisbaixo e anda em direção aos senhores.

 

-- É com extremo pesar que comunico que os encontramos. Eles não resistiram. Sinto muito.

 

Os pais, apesar de esperançosos, absorveram a informação de maneira lógica a princípio, perguntaram apenas a causa da morte dos dois.

 

 -- O rapaz morreu de esmagamento da caixa torácica e a moça de asfixia, mas só saberemos, com certeza, após os exames forenses. Estamos retirando os corpos agora e ainda vai demorar um pouco, pois o lugar é muito estreito e teremos que puxá-los com uma corda.

-- Podemos vê-los?

-- Assim que os retirarmos de lá, avisaremos, ok?

-- Está bem!

 

 

Os dois estavam com semblantes tranqüilos, pareciam não ter sofrido, foram encontrados deitados lado a lado: ele com o braço passado na cintura dela e ela segurando a mão dele com afinco. Os corpos foram liberados do Instituto Médico Legal de São Paulo quinta-feira, dia dezessete de julho de dois mil e três e foram enterrados no cemitério da Consolação em São Paulo. Os enterros foram simultâneos e familiares e amigos interagiram juntos em um último adeus a Bruna e Bruno que enquanto vivos, viveram, de forma intensa, seu grande amor. Foram enterrados lado a lado ficando juntos para sempre.

 

                                       Sexta-feira, 11 de julho de 2003

 

Dentro de um carro estacionado em frente a uma lanchonete na rodovia Fernão Dias, uma garota e um rapaz se beijam apaixonadamente.

 

-- Eu amo você!

-- Eu também te amo e vou te amar pelo resto da minha vida!

Tópico: "Gênero", por D. C. Amaral

Excelente

Achei o conto ótimo como um todo! Adorei a referência ao "Apanhador de Sonhos" e ao Stephen King. Pude observar também, uma semelhante passagem ocorrida em "Jogo Perigoso" do mesmo autor. A forma como o leitor é dirigido ao longo dos acontecimentos também é sensacional (estilo Dean Koontz). Parabéns Dinho! Está se superando.

Muito bom

A narrativa da paixão e morte do casal foi linda. Mais uma vez o autor está de parabéns pela riqueza de detalhes.

Vou finalizar apenas agradecendo ao autor pelo prazer da leitura (aguardo novo conto) e a Deus por não ter asma.

Parabéns

Esse conto foi muito bom. Me deixou curioso pra saber o fim e me prendeu a atenção o tempo todo, pois o li de uma só vez. O lance das datas alternadas durante o conto foi jóia também.

Parabéns ao autor por esse belo conto. Muito bom mesmo. Espero que sempre tenhamos contos interessantes como esse. Valeu!!!

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