"Fome", por Hugo Magalhães

    Empertigou-se aconchegantemente, cruzando as longas pernas bem torneadas sobre o lençol onde havia uma grande nódoa de sêmen. Ficou sentada na cama. Pôs o cigarro entre os lábios e o acendeu num único risco do isqueiro. A flama titubeou por um instante, e queimou vorazmente a ponta. A fumaça preguiçosa fundia-se a atmosfera impregnada de sexo à medida que subia e se esvaecia bem devagar. Pousou o isqueiro na mesinha-de-cabeceira, olhou para o cigarro abrasado com expressão despreocupante. Sua respiração era calma, puxava o ar num hausto profundo e o soltava sem pressa, fazendo a caixa torácica subir e descer sem mesmo perceber que fazia isso. Estava absorta na tranqüilidade do quarto, sem nenhum ruído, salvo o vento quente sibilante que saía de suas narinas. Olhou o vulto com desdém deitado despido ao seu lado de costas. No entanto havia, sem dúvida, prazer imenso ao lembrar do que aconteceu minutos atrás quando o próprio estava em cima dela, num vaivém contagioso e prazeroso. De repente, a mancha escura se movimentou por baixo do lençol, puxou-o para o lado e o jogou no chão.

    - Se soubesse que se comportaria dessa maneira não teria a intenção de ter-lhe chamado atenção. Grosso - sussurrou Karen, imóvel na escuridão. Era somente uma sombra com um ponto vermelho queimando no ar.

    - Queria saber se você estava acordada ou não, para poder sair daqui em surdina, buscar uma faca grande e cravá-la toda em seu peito. Depois apanhar suas jóias e sumir - disse o vulto. Girou na cama para o lado e beijou-lhe as coxas nuas. - Gostou da minha idéia?

    Karen continuou inerte. A brasa queimou forte, iluminando parcialmente parte do nariz e de sua boca, quando puxou um trago do cigarro, agora, diminuído.

    - Aposto que já fez muitas vezes isso...Mas agora não dá mais certo, pois meu marido está preste a chegar, infelizmente - disse, após soltar fumaça, esboçando um sorriso.

    - Você não é louca, é? - De sopetão, levantou-se da cama e procurou suas roupas, às cegas.

    Um estalo. Então a luz mortiça do abajur iluminou debilmente o quarto, lançando sombra do vulto em pé e nu em sua frente na parede. No semblante de Karen havia um sorriso maroto... - à tênue iluminação - parecia, de alguma forma, sombrio. No entanto, tal palidez constatada à princípio em seu rosto foi substituída por uma gargalhada contida. Sufocou o toco do cigarro no plano da mesa e apanhou algo ao seu lado no chão. Seu longo cabelo ruivo escorria por parte da face, dissimulando um olhar periférico.

    - Está procurando por isso aqui? Segurava as trouxas nas mãos, como um mágico mostrando a cartola. - Parece que seu plano falhou, em absoluto, garotão.

    Num movimento súbito, o vulto pegou o lençol que havia jogado no chão e lançou-o nela, no entanto, se virou antes de atingir-lhe o rosto.

    Os dois se agarraram na cama. Karen batia nele com um travesseiro felpudo, mas logo ele o tomou e passou a investir contra ela. Rolavam pela cama, atracados. Abraçavam-se num laço cego, beijavam-se com sede de prazer; línguas ávidas e salivosas percorriam pescoços em puro frenesi desesperado, investiam pelos queixos, desciam buscando mais pele, depois encontravam o pavilhão e sondavam, pacientemente, os ouvidos, deixando-os molhados de volúpia... Ele montou em cima de seu pescoço, segurando facilmente seus braços. Karen relutou de maneira incansável, por um instante, quando percebeu que estava, de fato, encurralada. Tentou usar as pernas livres, contudo esforço desperdiçado. Procurou rolar o corpo de lado, então caiu de cansaço. Estava esbaforida, esgotada. Ele era inabalável. Curvou-se sobre a cabeça entre suas pernas e murmurou quase inaudível. 

    - Quando nos veremos novamente, senhorita Hannah? - indagou num fio de voz sensual. Parece que você gostou um tanto de mim. Estou certo?

    - Não sabia dessa sua modéstia, senhor....

    Tergot K. estava sentado com uma perna em cima da outra, que formava sem mesmo perceber, o número quatro torto. Mesmo quando os óculos deslizavam até a ponta do nariz e levava-os novamente para perto dos olhos, não se abstraía de sua leitura. Era de praxe entrar no metrô, colocar o jornal debaixo da axila, passar os dedos pelos cabelos e procurar um lugar com luz suficiente para se realizar uma leitura agradável. Uma vez aprumado, tirava os óculos do bolso dianteiro da camisa e finalmente arreganhava o jornal em sua frente para ler.

    Durante todo o trajeto ficava absorto sempre quando voltava do expediente, então foi quando um baque abafado veio ecoando em sua direção. Cogitou remotamente, sem perder a linha de raciocínio da leitura, que uma bola de gude havia caído no piso aluminado do metrô. Mas esse pensamento soou-o meio estranho. Uma bola de gude? Quem levaria tal objeto dentro da carteira ou bolsa? Esperou terminar o parágrafo que lia para se certificar do que havia caído.

    Um objeto cilíndrico prateado rolou até seus sapatos de solas um bocado gastas e parou. Tergot esticou o braço e pegou o batom jazido entre os pés. Fechou por um instante o jornal e levantou os olhos pousando-os na dona sentada no assento da frente com um sorriso canhestro estampado nos lábios.                  

    - Desculpe-me pela intromissão - disse a moça de sedosos cabelos ruivos, bastante ostensivos e invejáveis. Tergot entregou-lhe o batom como se estivesse em câmera lenta; durante esse breve intervalo, que não passou de segundos, mas pareceu, sobretudo. Com a ponta do dedo, levantou pacientemente os óculos até encaixarem no rosto. Queria examinar com calma os traços daquela moça; os olhos esverdeados, as linhas gráceis das sobrancelhas, os riscos que torneavam seus lábios, a pele clara e, sem dúvida, suave... Sentia-se estático ante aquela imagem que mais parecia um quadro do que uma mulher. E ela estava ali, pronta para lhe dizer seu nome, pronta para lhe agradecer...

    - Oh, obrigada. E mais uma vez, desculpe. Meu nome é Hannah - disse, revelando corretas fileiras de dentes bem tratados e alvos, num sorriso enrustido.

    - Tergot Karl é o meu nome, moça. Mas, por favor, me chame de somente Tergot - retribuiu numa voz tosca, improvisada e com olhar evasivo. - Para os íntimos. Ela o achou grotesco.  

    A velha idéia de deixar escapar dos dedos o batom com o único propósito de chamar a atenção. Velha idéia, entretanto infalível. Era uma mulher matreira, indubitável.

    Abriu a bolsa e cascavilhou dentro a procura de algo. Embora Karen estivesse entretida com o reflexo de sua boca no espelho, no íntimo sabia que ele estava olhando para ela, como pôde ter ratificado tal pensamento assim que desviou o quadrado espelhado e flagrado o homem do jornal olhando-a sem pestanejar.

    Tergot limitava-se a ler o jornal e espiar a ruiva.
Quando começou a passar o brilho nos lábios, cogitou se sua ereção não seria revelada para os demais do metrô, embora tivesse, naquela viagem, poucas pessoas. Foi um exercício árduo, que somente amenizava quando voltava a atenção para qualquer parágrafo.

    Então a moça esqueceu o batom. Cruzou as pernas e os braços em torno do corpo. Ficou pensativa. Depois descruzou as pernas e deixou-as abertas, de modo sutil. Abriu-as poucos centímetros e as mantiveram assim. O convite estava dado. Tergot percebeu conscientemente o que via. A moça usava calcinha transparente, aquelas de fazenda tênue.Olhou em volta. Uma mulher carrancuda lia uma revista a qual lhe pareceu um tanto antiga pela cor amarelecida de suas páginas, uma garota de vestimentas punk parecia delirar com o chiclete que mastigava, um bêbado dormia de boca aberta de onde se via a baba escoar pelo queixo, outros estavam de cabeça baixa esperando chegar logo em casa, outros se chateavam com seus próprios pensamentos. No geral, estavam a sós.

    A moça, por um momento, fitou o olhar do homem sentado à frente. Tergot estremeceu. Desviou o olhar o mais rápido que pôde, como se tivesse tomado um susto. Demorou mas concluiu. E foi quando gesticulou para ele descer junto com ela no próximo ponto que a conclusão tornou-se plausível.

    Karen vasculhava a mente em busca da lembrança remota do nome do cara que estava em cima dela. Enxotou o pensamento de fraquejar.

    - .... senhor Tergot. Não sabia dessa sua modéstia. Concordo. Gostei de você. Satisfeito? --- indagou ela.

    - Nos veremos então outra vez?

    - Não sei. Sinceramente. Seu estômago remexeu.

    Tergot não chegou a ver o brilho nefasto que transpareceu furtivo em Karen. Ela o observava quieta, e de vez em quando passava a língua sobre os lábios, mas não por sentir intensa libido. Na verdade sentia fome.

    - Por que você diz isso...

    Desligou a luz do abajur e, de chofre, começou a chupar-lhe o membro, que logo ficou rígido feito pedra. Sugou-o com bastante vigor, passando a língua ensebada pelo prepúcio e salivando sobre a glande. Por baixo das pálpebras seus olhos reviravam, mostrando parte das escleróticas.  

    Então a maçaneta da porta da sala girou com um ruído. Parou. De novo. Tergot estava em outro plano dimensional, distante, delirando, quando percebeu algo estranho, algo em que não poderia acreditar, algo que só acontecia na ficção, com seus amigos de bar. Estava tão bom, mas poderia ficar muito, muito pior.

    Levantou-se da cama num solavanco animalesco. Juntou todas suas roupas possíveis que se encontravam naquele raio e ficou catatônico. Karen pedia a ele que não fizesse barulho, sacudindo-o fortemente pelos braços como uma mãe que quer livrar o filho do pesadelo que está tendo. Tentava acalmá-lo, tentava também se acalmar. Afinal seu marido havia chegado e teria que dar tudo certo, conforme o combinado entre os dois, já estava no fim da coisa e não poderia falhar. Mais uma vez teve a certeza de que tinha se saído bem. E seu marido, mais uma vez, ia adorar... como sempre.

    Karen sugeriu que ele subisse em cima do armário onde havia um vão. Sem hesitar, o homem jogou as roupas e escalou. Deitou de lado e sentiu terrivelmente o corpo estremecer dos pés a cabeça. A respiração saía em soluços inevitáveis. Levou a mão à boca a fim de sufocá-los. A posição fetal fê-lo lamentar por ter nascido.

    Ela havia saído do quarto. Ouviram-se sussurros. Passos firmes aproximavam-se e depois, com um único golpe, uma porta fechou em algum lugar. Tergot não tinha nenhuma noção de espaço, pois assim que Karen o convidou para entrar, agarrou-o e o trouxe para quarto, tirando-lhe o cinto e desabotoando-lhe a camisa. De onde estava dava para ver somente a cama na qual já havia alguém deitado.

    Prendeu a respiração. Como não pôde ter visto, meu Deus! Como pôde ter sido tão imbecil de aceitar uma proposta como aquela, embora havia ela dito que não tinha marido, ou alguma espécie de companheiro. Certo. Um amigo seu mais tarde diria que a carne é mesmo fraca, meu chapa, no entanto não cairia bem ter de escutar uma coisa dessas deitado numa cama de hospital, tudo pela porra de uma trepada. Fechou os olhos. Por um momento, pensou sair dali correndo nu mesmo. Não importava. O que o incomodava era ver aquela sombra olhando para ele. Uma sombra grande. Tinha certeza de que era alguém, óbvio. Tergot pensou na possibilidade de não ser visto, ao passe que se ele não conseguia enxergar com clareza quem era, também poderia ser possível que a mancha deitada na cama não pudesse vê-lo e vice-versa. Depois de alguns minutos Karen chegou exalando um aroma de colônia barata pelo quarto.

    - Está cheirosa, meu bem. Venha cá, deite-se aqui e me faça gozar, vadia - disse a sombra numa rouquidão terrificante, assombrosa.

    Tergot entendeu. Aquele era o marido dela. “Nossa, ele está deitado de frente para mim!”, pensou e sentiu algo molhado escorrendo por suas pernas. Karen saíra do banheiro. E estava ali deitada com ele.

    Os dois conversavam em sussurros. Depois de um intervalo transaram brutalmente, com direito a tapas sonoros e gemidos escandalosos, quase abafando o rangido irritante da cama. Cessaram. Manteve-se um silêncio demorado, um silêncio sepulcral que quase fez Tergot se esquecer de onde se encontrava se não fosse por uma mão pesada que puxara seu pé para baixo.

    Tergot acordou grogue. Sua visão era um emaranhado de imagens distorcidas, amorfas e escuras. Sentia o corpo todo dorido, a cabeça latejava lancinante, sentia o pescoço úmido por algum líquido denso, a boca estava ensopada pelo que parecia ser o mesmo líquido pastoso. Dentro da boca uma sensação pulsante parecia comprimir o cérebro. Estava despido e com braços e pernas amarrados. Não sabia que lugar escuro era aquele. A pele ardia acima dos olhos, abaixo das axilas, nas pernas... Havia uma única fonte de luz que vinha do outro lado. Ali dentro fazia bastante frio, como se as paredes fossem revestidas de gelo. Uma sombra se formou atrás da porta. Um rangido. 

    Uma silhueta surgiu no umbral. Era uma mulher. Tergot estreitou os olhos procurando uma definição. Karen pressionou o interruptor e as luzes demoraram um pouco para se acenderam fracamente em cima dele, de sua pele lisa, escorregadia, carente total de pêlos.

    Estava numa espécie de freezer. Pensou se o seu coração não fosse parar de imediato de funcionar quando olhou à volta e notou na parte de cima de uma prateleira metade de um braço humano arroxeado. As paredes contíguas do recinto soturno eram marcadas por unhadas e filetes de sangue escuro.

    - Hannah, não deixe ele fazer isso comigo, por favor. Eu não conto para ninguém, eu prometo! - Foi o máximo que conseguiu proferir, expelindo sangue. Suplicou aos prantos. Sua voz estava esgotada, quase ininteligível, pois parte de sua língua fora cortada. E Hannah a chupava na boca.

    - Você realmente tem uma língua gostosa.  

Uma voz veio de trás dela.

    - Karen, querida, estou com fome. Por favor.

    “Karen?” Pensou, Tergot com os últimos resquícios de sanidade. “Karen?”

    - Acho que você deve durar uns vinte dias - disse ela, voando em cima dele e abocanhando parte de sua face macilenta.

    Cozinharam numa grande panela de ferro os pedaços do corpo mutilado. Após o jantar, abriram uma garrafa verde musgo e despejaram em dois copos o sangue fresco com diminutos nacos de língua. Brindaram.

Tópico: "Fome", por Hugo Magalhães

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Hummm... Cruel e envenenador... Valeu a pena rastejar meus olhos nítidos sobre suas palavras sólidas... Que prazer ressentir a fortaleza medonha que criaste Hugo... Bom conto... Certamente deixa o leitor em apuros... Obrigada.

Parabéns

Gostei. Bem escrito. :)

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