"Eu Só Penso em Você", por Róbson Nunes

 

    Beto entrou em casa, jogando o casaco de couro marrom sobre o sofá, trancou a porta e guardou a chave no bolso. Ele precisava tomar estas precauções, logo sua casa poderia ser invadida pela polícia, ou por moradores revoltos.

   Andou até o quarto e com as mãos tremulas retirou de dentro de uma gaveta um pequeno frasco. Abriu-o e sentiu o odor familiar e calmante que este exalava.

   Despejou uma pequena quantidade do pó branco sobre um livro, tomando o cuidado de manter a capa deste limpa. Guardou o frasco no bolso. Retirando da mesma gaveta uma grande faca arrumou cuidadosamente o pó imitando uma linha. Analisou-a por um momento. Retirou, também da gaveta, um pequeno cilindro. Aproximou o pequeno tubo ao nariz, inclinando-se até que ficasse muito perto do livro, com uma forte aspirada fez sumir todo pó disposto ali.

   Largou o material utilizado encima da cama. Arrumou o cabelo escuro, que parecia molhado, por causa da oleosidade de muitos dias sem serem lavados. Deu mais uma fungada forte, coçando o nariz ao mesmo tempo. Sentiu uma vertigem tomar conta de sua mente. Sentiu náuseas. Na esperança de cair sobre a cama, tombou pelo chão, sua cabeça fez um ruído oco ao bater de encontro o assoalho de seu quarto.

    Beto não teve noção de quanto tempo ficou desacordado, mas acordou exatamente quando sua mulher começou a prepara o jantar, na cozinha, no final do corredor. Beto ouviu-a pegar a  tábua de cortar carne, abrir  uma gaveta, remexer em alguns talheres e fechá-la novamente.

    Beto levantou-se, cambaleante dirigiu-se para a porta do quarto, caminhando pelo corredor, ora batendo na parede da esquerda, ora na da direita. Ouvia sua mulher cantarolar baixinho, aquele música do Kid Abelha que ela tanto gostava.

    ...eu só penso em você, só penso em você, só penso em você...

    Ele já a havia batido por causa daquela música. Depois que ela começava neste refrão nunca mais acabava. Ela pegava a trilha do “só penso em você” e assim ficava por horas a fio se deixasse. Mas não, ele não deixava, ele ia até a cozinha e lhe fazia calar a boca, ah ele fazia. Ele fazia as mesmas coisas que seu pai fazia. Com seu pai era assim, “ou se fazia o que ele queria com um sorriso no rosto, ou se fazia o que ele queria com um olho roxo”, era o que ele falava. Agora refletindo, ele se parecia um pouco com seu pai, e não era só no nome. Umberto, que nome horrível era aquele, certamente não era escolha de sua mãe, mas seu pai quisera...

    Beto balançou a cabeça pra dispersar os pensamentos ruins, o velho tava morto e pronto. Mas o problema não era este. O problema era que sua mulher também estava morta. E no entanto ele podia ouvir sua voz tão claramente como se ela estivesse ali.

    Ele caiu no meio do corredor, batendo com o rosto na parede. Apesar de todo barulho sua mulher, ou o diabo que fosse, continuava cantarolando na cozinha. Ele levantou-se indignado, tomado por fúria, iria até lá, fazê-la calar a boca. Se ela não estivesse lá o fantasma dela se arrependeria de ter a começado aquela melodia.

    Adentrou na cozinha, deparando-se com sua mulher de costas. Ele podia ver as esquimoses e os hematomas que os ombros sustentavam. Parou por um momento, olhando-a de esguio, o que aquela morta fazia ali? Isto que era a mulher que lhe obedecia, mesmo depois de morta ela voltava para preparar o jantar.

    Beto esboçou um sorriso. Mas logo escondeu o rosto entre as mãos, algo estava errado. Ou não estava tão errado assim, talvez tivesse tomado uma dose grande demais, porém pareceu-lhe uma pequena dose antes de tomá-la.

    Ele relembrou do almoço daquele mesmo dia. Quando sua mulher falou-lhe sorrindo que estava grávida. Ele se desesperara. Partira pra cima dela, apagando aquele sorriso de seu rosto. Espancou-lhe violentamente. Tentava desesperadamente acertar-lhe a barriga, mas ela protegia-se inclinando-se, deixando as costas a mostra. Era uma técnica que ela havia desenvolvido depois de muitas surras. Ele golpeou-s nas costas. Grudou-a pelos cabelos e arremessou-a de encontro a mesa, onde ela bateu a cabeça e caiu no chão, recentemente lavado da cozinha. Ali ficou por uns instantes. Beto foi para sala, fumou um cigarro, e então como não ouviu barulho algum de Ana voltou pra verificar. Ela permanecia ali, deitada, imóvel, como havia caído. Ele chutou-a nas paletas, mas esta nem se contorceu de dor. Virou-a então vagarosamente. Pode ver o rosto sem vida e a enorme ferida que deixava escapar um líquido espesso e avermelhado. Impossível, ela não podia ter morrido com uma batidinha daquelas.

    Beto chocalhou a cabeça, livrando-se da imagem quando ele falou:

    - Não Beto, você não ta viajando.

    Ele levantou os olhos e pode ver ali sua mulher, viva. Bem, seu rosto estava sem vida, os olhos estavam revirados, deixando-se tomar por aquela parte branca. A pele era também branca, mas em volta da boca e dos olhos a tonalidade era arroxeada. Sua mulher estava ali parecendo a coisa mais espectral do mundo, com toda aquela fisionomia horrenda segurando uma colher de pão na mão.

    - Por que Beto? – falou ela amavelmente – Se você não queria um bebê poderia ter me deixado ir morar com minha mãe novamente, como eu sempre quis. Poderia ter me poupado de mais uma surra, poderia ter me deixado ir. Mas Beto, eu sempre te amei, apesar de você me bater, me escravizar e fazer todas aquelas coisas horríveis comigo, eu sempre te amei. Mas você nunca soube como eu posso ser má quando quero – Anna fez uma pausa, permanecia imóvel, mexendo somente a boca, com os olhos virados das órbitas, olhando o nada, o rosto um pouco inclinado para a direita.

    – Eu só penso em você, só penso em você, só penso em você...

    - Não – gritou Beto deixando a cozinha.

    Disparou para o quarto, talvez mais uma dose, talvez mais...

    - Só penso em você...

    Ela ali estava no quarto, deitada na cama.

    Beto correu para o banheiro, batendo a porta atrás de si. Levou a mão à maçaneta, procurando a chave que deveria estar na fechadura, mas não estava. Quando percebeu o que estava acontecendo já era tarde de mais. Ouviu um click metálico e a porta estava trancada. Por mais que ele puxasse a porta não se movia nem um centímetro.

    - Eu só penso em você...

    Ele podia ouvir a voz fantasmagórica de Anna, do outro lado da porta, vagando pra lá e pra cá, o que ela estaria fazendo?

    - Beto, não pensou que eu o deixaria pensou? – falou novamente com aquela voz sem entonação.

    Ouviu barulhos no quarto, na sua gaveta preferida. Levou a mão ao bolso, estava ali ainda, seu pó estava ali. Com o frasco estava também a chave da porta da casa. Ela não sairia dali enquanto não o libertasse. Ficou mais tranqüilo com este pensamento. Despejou um pouco do pó branco na tampa do vaso sanitário.

    Depois de cheirar o conteúdo começou a ter idéias do que ela faria. Ela colocaria fogo na casa, matando-o. Espiou pela fresta, por baixo da porta, não via movimentos em lugar nenhum. Especulou pela pequena janela do banheiro, nada via. Somente aquela melodia, baixinha.

    Cada pingo que caia na pia era um susto novo para Beto. Ele estava apavorado. Havia fantasma por todos os lados, mas ele não podia vê-los. Mas estavam ali, ele sabia que estavam, estavam em algum lugar. Estavam esperando que ele caísse no sono para pegá-lo. Como quando era pequeno, os monstros sempre esperavam o escuro para se revelarem. Mas ele não podia dormir, não podia. Havia ainda uma grande quantidade de cocaína no pote. Beto foi cheirando, mantendo-se acordado a cada novo susto. Tinha os olhos arregalados, os ouvidos atentos a todos ruídos.

    Caiu, então, num choro infantil. Deitou-se nos frios azulejos do banheiro. Enrodilhou-se como uma criança com medo. Esperava a qualquer momento o fogo, o fogo a queimar-lhe o corpo.

    Resvalou pro sono, ouvindo a distante voz de Anna cantando. Cantando pra ele dormir.

    Os moradores do bairro de Beto receberam a notícia com alegria. Não era o que eles planejavam, mas estava acabado.

    A polícia havia invadido a casa de Beto. Tendo que arrombar duas portas para encontrar o garoto de 26 anos atirado no chão do banheiro. O drama havia chegado ao seu mais cruel fim. Ele matara a moça num momento de desespero e logo se suicidara, quando percebeu o que havia feito. No espelho do banheiro deixou a mensagem “Eu só penso em você”, escrita com o batom preferiso de Anna.

    A comunidade entendeu a dor e o sofrimento de Beto. Entenderam porque na Certidão de Óbito seguido de causa mortis vinha a palavra overdose.

    Sentaram-se à mesa o detetive Jorge da divisão de homicídios e seu auxiliar.

    - Acho que há algumas coisas neste caso que não se encaixam – disse o detetive.

    - O que? – perguntou Aurélio abocanhando um pão francês.

    - Você entendeu a cena toda?

    - Não, eu não entendi porque o senhor pegou a lista de compras dela e pôs no bolso.

    - Ora, auxiliares – disse Jorge com ar superior – Conferi a letra da lista com a letra do espelho, não posso dizer que são iguais, porém são semelhantes...

    - Claro a moça está morta, não poderia escrever, e pode ter sido o rapaz...

    - Nenhum drogado tem aquela precisão de escrever tão desenhado.

    - Sei lá...

    A conversa morreu. O detetive entregou-se aos seus pensamentos. Havia muito mais coisas entre nosso mundo, nos espreitando às escuras do que podíamos imaginar.

    Três meses depois a mãe de Beto foi ter com o detetive, para pegar a chave da casa.

    - Aqui está a chave Dona Rita. Tivemos que consertar a fechadura, já mandamos trocá-la. A fechadura do banheiro é que não mexemos, deixamos a casa trancada e agora a senhora dá um jeito. Aqui estão as duas chaves...

    - Certo – disse Dona Rita, mas perguntou logo curiosa – Onde encontraram a chave do banheiro? Até onde eu sei a chave da casa estava com Beto e a chave do banheiro não havia sido encontrada.

    - A chave... – disse o Jorge meio encabulado – a chave do banheiro estava entre as mãos de Anna, foi encontrada no IML no mesmo dia do enterro, quando a preparavam...

    - Mas como é que...

    - Desculpe Dona Rita, não posso lhe dar mais informações pois não as tenho, mantenha isto em segredo, eu já desisti de entender este caso.

Tópico: "Eu Só Penso em Você", por Róbson Nunes

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Real e imaginário... As doses se misturam... Fantástico... Sinceramente... Comovente.

Ótimo

Muito bom o conto. Envolve situações reais, muito comuns do cotidiano, como o fato das Drogas. Não sei se conseguirei dormir essa noite!

Estamos esperando outro conto como esse, Parabéns!

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