"Estranha Criatura", por Paulo Valença

1

    O sargento negro, de fisionomia acinzentada pela contrariedade, explode, aos gritos:

    - Mas que história é essa, a senhora chama a gente para dizer que o patrão está morto e o que vemos?

    A mulher de repente, banhada pelo suor frio, trêmula, responde, tentando se esclarecer:

    - Mas... Quando eu entrei o doutor Arthur estava aí na cadeira, com o rosto caído no teclado do computador, de olhos duros, a boca meio aberta, com os dentes crescidos. As pontas vermelhas... Ele estava morto, foi por isso, que liguei pra os senhores.

    O homem corpulento fita-a, o rosto mais pálido-cinzento, e torna a gritar:

    - E onde está esse cara? A cadeira está vazia... Isso é uma “pegadinha?”. Não se brinca com a autoridade!

    Dá-lhe as costas, seguido por os dois subalternos.

    D. Rita sente a vista se embaçar pelas lágrimas. Mas como, como? E escuta novamente a voz antipática, mais grossa, já a porta que se comunica com a varanda conjugada:

    - A senhora deve estar estressada, imaginando coisas, mas, por favor, não ligue mais pra gente não. Basta de palhaçada!

    Então se volta aos policiais:

    - Vamos zarpar, por hoje já chega!

    Os passos duros ferem o azulejo, cruzando o espaço do terraço e, vencendo-o descem a escada à esquerda, em direção ao térreo, e ao portão um pouco adiante.

    D. Rita ainda perplexa com a cena do desaparecimento do corpo, procura com a vista turva do choro que busca conter, o corpo...

    - Como o doutor sumiu?

    A janela à frente aberta, os edifícios destacam-se a luz da manhã de verão. O céu azul, sem nuvens. A zoada de uma moto cortando a rua transversal. O som do carro policial partindo, em velocidade. E os passos lentos de D. Rita retrocedem à varanda, onde ela se senta na cadeira de balanço, sentindo as pernas pesadas. A testa e as costas banhadas do suor frio. Cerra os olhos, na resignação da inesperada, brutal realidade, e reflete, tentando explicar o que sucedeu. Sim, porque o doutor Arthur estava debruçado sobre o teclado, com os olhos duros, a boca de caninos crescidos, avermelhados. Muito pálido. Morto.     E, a súbita indagação: E se não estivesse, apenas se encontrasse dormindo, enquanto ela ali na varanda, então ligara à polícia, comunicando-lhe a morte, dizendo o que presenciara?

    Descerra os olhos, ergue-se e, prática, abandona a varanda, desce a escada e vai fechar o portão, reentregando-se a vida de doméstica, de cuidar da casa. Mas, e depois, o que fazer sem o doutor estar presente, deparando-se apenas com a própria solidão?

    - É cada abacaxi que nos acontece!

    Com a mão direita aberta enxuga a testa e, refletindo, sobe os degraus. Pensando em qual atitude a adotar.

 

2

    Dois meses se passaram após a cena entre D. Rita e a polícia. Agora ela trabalha em nova residência, no bairro de Boa Viagem e procura esquecer o que houve. O irmão do doutor Arthur se encarregou de zelar pela residência de repente desocupada pelo outro.

    - Eu vou cuidar disso aqui e vou também indenizar à senhora pelo tempo de trabalho com o Arthur.

    Cabisbaixa, ela apenas aquiesceu em gesto de cabeça.

    - Está certo assim?

    Erguendo então o rosto, ela respondeu:

    - Está bem, doutor Rui.

    Recebeu o que lhe fora prometido e teve sorte, logo conseguindo novo emprego. Nada como um dia atrás do outro para a gente por tudo no devido lugar.

    - Tudo esquecer...

    Sorri prática e volta à atenção ao que vai ficando para trás, à proporção que o ônibus se afasta do bairro. A noite vai caindo. As luzes acendem-se nos edifícios imponentes, modernos, bonitos. O mar enegrece-se com a nova noite. D. Rita observa. E pensa na filha ainda menina esperando-a, à porta da casinha, com o pai canceroso, acabando-se no leito. Até quando o José viverá? Precisa mesmo dar um jeito de interná-lo...

    Suspira baixinho, como num desabafo e segue o movimento dos automóveis, motos, bicicletas na marcha nervosa de todas as noites. E de repente, a indagação, que sempre a persegue: E o doutor Arthur como desapareceu? Como explicar esse mistério? Como...

    - Dê licença.

    Pede-lhe a adolescente morena, graciosa, segurando os livros.

    Afastando-se de encontro à janelinha, ela permite que a jovem ocupe a cadeira vizinha.

    - Obrigada.

    - De nada, mocinha.

    Fora, nas calçadas, os pedestres caminham apressados na rotina de todas as noites pós o término dos expedientes nos escritórios, oficinas, supermercados, indústrias.

    Adentrando, o vento frio, agradável acaricia as faces dos passageiros.

    Com a mão de longos dedos a companheira de viagem tenta pentear os cabelos finos, negros, longos para trás e D. Rita sorri, entendendo-a... Também já foi assim novinha, vaidosa.

    A condução ganha o Bairro da Imbiribeira. A noite então já é senhora de tudo, da cidade.

 

3

    - Tudo bem com o José, filha?

    - Naquilo mesmo. Mãe a gente tem de internar o pai de novo...

    - É, já pensei nosso. Temos de dar um jeito.

    Passa. A menina segue-lhe a figura gorda, cansada, de passos curtos, lentos. E sente de repente uma “coisa”... Ah, pobreza danada! Um dia, terá uma outra vida. Um dia...

    - Filha ajuda aqui com o teu pai.

    A voz parte do quarto. Apressa-se para atender à solicitação de virar de lado o corpo magro, sem força.

 

4

    O jornal publica a reportagem em letras grandes, vermelhas: “Corpos de adolescentes encontrados em locais ermos!” As fotos. Os pescoços. As nucas. Os furos paralelos. A repetição, nas cenas conhecidas de outros números. D. Rita larga a folha, perplexa. Será que... O doutor Arthur é mesmo um vampiro e que enquanto ela estivera naquela varanda, ele deixara o quarto-escritório voando? Daí se explicar o motivo do seu misterioso sumiço? Mas...

    - A senhora deixou o jornal cair. Vai levar?

    - Vou moço. Quanto é?

    Paga e apressa-se para tomar o coletivo que acaba de estacionar, pois o trabalho lhe convoca, na responsabilidade de viver e manter a família.

    No céu azul as nuvens passeiam devagarzinho.

    O ônibus parte.

 

5

    - Mãe, a senhora já notou?

    - O quê, filha?

    A menina mostra-se séria, preocupada:

    - Deu pra aparecer por aqui de noite, um morcego enorme.

    A mulher então a fita, tomada por um receio, como uma ameaça e inquire:

    - Um morcego?

    Busca se conter e, conciliadora, conclui:

    - Deve ser por causa dessa mata aí próxima.

    - É, pode ser mãe.

    Silenciam, entregues às próprias reflexões.

 

6

    O bater de asas, a essa hora da madrugada? Não, pode ser sua impressão, ainda sugestionada com o que presenciou, viveu e não encontrou a justificativa do repentino desaparecimento do ex-patrão...

    Vira-se no leito. No outro vizinho, o José dorme, a respiração cansada pela enfermidade. No quarto conjugado, a filha também. Mas... As asas de novo? Impressão? Indaga-se de novo e, numa súbita resolução ergue-se, cruza o corredor e abre a porta de trás da casinha, que se comunica com o quintal. Nada. Avança. Pára ao meio do quintal. Perscruta. Melhor voltar à cama. Deixar de se “encucar” com besteiras, coisas que não existem, contudo, mal torna a caminhar, sente a mordida na nuca e ouve o bater das asas, uma de encontro à outra, como num aplauso, e cai. Novamente sente-se mordida e, nada mais sente, aquietando-se...

 

7

    O jornal “A folha” publica nova reportagem, agora dizendo ser a vítima uma senhora gorda, encontrada no quintal de sua própria residência, ali no bairro do Alto do Capitão e que tudo indica, foi também atacada por um estranho animal, que após lhe sugar o sangue, lhe causou a morte.

    - O que o senhor acha que matou a mulher, sargento?

    O negro corpulento fita o retrato da mulher que lhe parece ser a mesma senhora daquela vez do chamado e que não passou de um “trote”, e responde:

    - Não sei Galego. Se a gente tivesse ido ver... Mas, essa mulher... Deixa pra lá! Vamos trabalhar fazer a nossa “ronda”.

    - Sim, sargento.

    Entram na viatura, que parte em velocidade. Entregues a função de proteger o bairro de gente de outra “esfera”, os moradores isentos (isentos?) dos ataques da estranha criatura.

    Com a sirene aberta, o veículo adentra na avenida, na manhã ensolarada, pois haja o que houver, à vida continua, enquanto os policiais seguem calados.

Tópico: "Estranha Criatura", por Paulo Valença

Nenhum comentário foi encontrado.

Novo comentário