"A Fuga da Lua", por Paulo Valença

 

1

 

    Mais um serão, que terminará às 6 da manhã seguinte, quando a outra turma assumirá o comando do novo expediente que irá até às 18hs. Refletindo, Tadeu vai descendo a escadaria longa, estreita. Nas laterais as residências conjugadas de porta, janela e algumas com a varanda e o murinho à frente, com o portão baixo. Vida sacrificada essa sua. Um dia se libertará de tudo, encontrar-se-á com outro emprego, outra vida?

    - Só o futuro dirá.

    Sim, o futuro lhe responderá. Por enquanto, é se acomodar em ser operador da impressora, para ganhar a própria sobrevivência e a da mulher, a Rita. Vence os degraus. A barraca à esquerda, com dois homens bebendo, debruçados no balcãozinho de fora, conversando. O barraqueiro negro, Seu Júlio, sentado à frente da mesma, seguindo o movimento da rua, com pedestres, carros e motos.

    - Boa noite.

    - Boa Noite Tadeu.

    Ele sorri, adianta-se. Conhece todos daqui do bairro. É bom, prático se fazer popular. O lugar é “carregado”, tem de tudo...

    Caminha. Cabisbaixo. Apressando-se.

    Sem tardar, “bate” o cartão.

    - Tás no serão Tadeu?

    Indaga o vigilante atrás do birô, indiscreto como sempre.

    - Pois é, Zé. Serão.

    Repõe o cartão no quadro ao lado do relógio, na parede e, vencendo os degraus à direita, encaminha-se ao salão adiante, o chamado “coração da fábrica”.

    A noite então já envolve os telhados das seções conjugadas. O bueiro estreito, comprido, destaca-se, cortando-a. A zoada ritmada das máquinas já se faz ouvir.

    - No serão também colega?

    Voltando-se de lado, responde:

    - Tou Negrinho. Começo hoje.

    - É bom porque a gente fatura mais um pouco.

    - É isso aí.

    Adentram no salão gigantesco. E se apressam em trocar de roupa, vestir os macacões. Assumir as funções.

    Fora, no lado oposto do muro que limita o domínio da indústria com a avenida, os veículos transitam nessa em velocidade, aproveitando o pouco movimento, prenúncio de que a noite amadurece. E os sons dos pneus e buzinas se fazem ouvir.

    Tadeu pressiona o botão e a impressora começa a trabalhar. Toc, toc, toc, toc...

    Sentando-se no banquinho próximo, ele segue as caixas abertas, descendo na esteira.

    Um dia, quem sabe? Talvez se encontre “noutra”... Esperançoso sorri, aquietando a alma.

 

2

    - É degrau demais pra o meu gosto.

    Reclama baixinho, em desabafo, o sujeito magro, alto, amulatado, de roupa e sapatos brancos.

    Veste-se assim quando vai trabalhar, executar a nova “missão”.

    - Estão aqui os retratos, o endereço do safado e tua parte.

    A mão bem tratada lhe passou o envelope com as fotos e as cédulas.

    Recebeu-o. Sério. Concentrado no que o doutor lhe falava, esclarecendo-se.

    - A outra parte só depois do “serviço” feito... Tudo certo?

    Então ergueu o rosto e fitando o outro nos olhos apertados pela gordura das faces amareladas, respondeu:

    - Tudo certo.

    Novamente a mão veio ao seu encontro, apertou-a, concluindo a entrevista e, erguendo-se:

    - Vou agir, doutor. Pode ficar calmo.

    - Sei sei. Conheço o seu potencial. Tchau!

    Saiu devagar da sala larga, bem mobiliada, moderna. Movia-se se autocontrolando, pois sabia estar sendo seguido pelos olhos analíticos do doutor.

    Agora, é entrar no carro, que está na garagem da rua transversal e ir cumprir sua “missão”...

    Vencendo a escadaria, encontra os dois homens na barraca, bebendo.

    - Tudo “jóia” aí amigos?

    - Tudo “nos conforme”, Ivan.

    Ele se adianta, apressando-se, para evitar uma provável indagação, dar “bandeira” do próprio “serviço”... 

    Um dos homens com os olhos segue-lhe e, para o outro, que também acompanha a figura já reduzida pela distância:

    - O de “branco” vai trabalhar...

    O silêncio então os abraça, na conveniência prática, necessária à própria sobrevivência. É a lei do bairro, a voz que cala.

    Na cadeira à frente do estabelecimento, o barraqueiro finge cochilar. Também prático conhecedor que é da poderosa lei, enquanto à noite “madura” tudo envolve. Residências. Veículos. Pedestres. E o automóvel que ganha a avenida praticamente deserta.

    Dirigindo-o, o homem antever a cena. O senhor gordo, bem-vestido ao entrar na rua, saltar e ser atingido...

    - Assim é que funciona.

    Acelera. Indo ao encontro do que planejou e executará.

 

3

 

    O desejo de repente chega e vai dominando-o... Abandona a janela, de onde vê o céu e a lua cheia passeando devagarzinho. Cruza o quarto. Abre a porta e desce a escada em caracol. Apressado.

    Na sala embaixo, a mulher idosa segue-o com os olhos críticos, contudo, nada pergunta, pois sabe que o rapaz não lhe responderá. Ele em passos largos corta o ambiente e abre a porta envidraçada.

    A mulher desvia os olhos, fingindo se prender às cenas da novela, na televisão defronte. A porta bate, macia, fechando-se.

    - Silvinho saiu...

    Diz baixinho, resumindo-se. Para onde irá esse menino nessa hora noturna? Algum encontro amoroso?

    - Essa mocidade de hoje é assim mesmo: cheia de novidades, avançada!

    Outra vez fala, e busca se limitar à história repetitiva do drama amoroso, na telinha.

    No carro, o rapazinho sente o gosto adocicado do que sugará. E os caninos crescem. Suando, acelera.

    No céu, a lua passeia tranqüila, testemunha das cenas e mistérios noturnos.

    Adiante, a jovem esguia caminha, rebolando as ancas no charme próprio da idade.

    O automóvel estaciona ao meio-fio.

     - Você quer uma carona, morena bonita?

    O carrão cinza, importado, o rosto de traços corretos do seu condutor, de cabeleira negra, grande, na moda...

    - Tá bem, aceito.

    A porta se abre, e a adolescente entra. Sorrindo, vai de rosto voltado ao que o carro deixa para trás. Residências. Um ou outro pedestre. Uma moto. A praça deserta. “Curte” o passeio, inocente do que a espera.

    Logo, Silvinho desvia o carro e estaciona no terreno baldio.

    Perplexa a moreninha indaga:

    - Mas... O que houve?

    Os lábios se abrem no sorriso cruel e... No céu, a lua então se esconde numa nuvem, para não presenciar.

Tópico: "A Fuga da Lua", por Paulo Valença

=)

Descrições de ambiente bem trabalhadas Paulo e de fato são envolventes !
Bora escrever algo juntos?

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...

Hummm... Ritmados no mistério, todos se fecham diante da noite. Saboroso... Bem saboroso esse ar maléfico dos olhares intrigantes, um segredo e uma vítima... Humm... Interessante. Bem interessante... Envolve o leitor num sentido cruel... Obrigada.

Re:...

Que misteriosa !

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